O Repórter de São Pedro                                                                                                                             
Não perdia um velório. Era figurinha carimbada em todos daquela região metropolitana. Entusiasmado pelo clima fúnebre, anotava todo o acontecimento em sua caderneta. Sujeito excêntrico, sem amigos; gostava do que fazia. Chamava a atenção pelo seu trejeito e pelo traje que usava: uma túnica de cor branca, um cinto de pano vermelho amarrado em sua cintura  e calçando uma alpargata desgastada e marrom.
Seu  Leleco, que já o tinha visto em vários velórios, intrigado,  aproximou-se, e, no pé do seu ouvido, perguntou:
- O senhor é parente do defunto?
O homem lhe respondeu, indiferente:
- Não é da sua conta!
Seu Leleco, irritado, então, disse:
- O senhor é muito mal-educado! Só  estou lhe perguntando porque já o vi em muitos velórios. Sempre vestido desse jeito, esquisito, com esse livrinho relatando não sei o quê e com esses gestos inquietantes...  Desse jeito o senhor incomoda todo o mundo. Chama mais  atenção que o defunto. O senhor por acaso é policial, agente funeral ou agente de seguro?
O homem, franzindo a testa, respondeu, imediatamente:
- Não sou nem uma coisa, nem outra.
Seu Leleco insistiu e perguntou:
- Ah! Então o senhor é  amigo do peito de Pedro, não é?
O excêntrico lhe respondeu na bucha:
- Do Pedro sim, mas, do defunto não.
Seu Leleco ficou com a resposta engasgada e, irado e meio confuso,  persistiu:
- Como assim? Se o Pedro é o defunto e o senhor não é nem parente, nem amigo, então o que faz aqui?
Dessa vez, em tom menos agressivo, o homem de alpargata desgastada, respondeu:
- Não sou nem parente, nem amigo, nem nunca o vi nem mais gordo, nem mais magro em toda a minha vida. Estou aqui a serviço do céu.
Seu Leleco espantado com as respostas do excêntrico, dessa vez quase foi à nocaute, e, encabruado que era, respirou forte, impostou a fala e disse:
- O senhor está delirando... A serviço do céu?! O senhor quer dizer que não é deste mundo?
O homem de branco, percebendo sua gafe, meio desnorteado, fitou-o e disse:
- Não! Quer dizer, sim!...  Já fui há muito tempo atrás. Hoje não pertenço mais a este mundo pecador, violento e desalmado.
              De cabelos em pé, parecendo um espantalho,  e com “a pulga atrás da orelha”, seu Leleco, trêmulo, mastigando a voz, falou:
- Então quer dizer que o senhor já viveu aqui, morreu, e agora é um espírito. Por isso, faz  essas anotações. Prá quem? Por quê?
O homem, enfurecido, respondeu:
- Sim! Quer dizer, não!... É isso mesmo! Já vivi aqui, morri,  e agora sou o Repórter de São Pedro. Tenho que anotar todo o acontecimento da história do falecimento. Desde o seu último instante de vida, às causas da  morte, às lamentações... Tudo o que parecer interessante, curioso ou  triste. Tenho que levar o relatório para o secretário de São Pedro, antes que a alma  abandone o seu corpo.
Seu Leleco, assustado e já desconfiado dessa conversa, disse:
- O senhor está com lorota comigo,  está  blefando, só pode estar. Isto é  brincadeira de mal gosto. É coisa impossível! Nunca ouvi ninguém dizer nada igual antes.  Morto não volta pra contar histórias, nem fazer relatórios... Isso é uma piada mal contada. Nem na Bíblia Sagrada li nada igual. Esse é o maior absurdo que já ouvi  em  toda a minha vida.  Fale que é mentira, pelo amor de Deus!
O repórter de São Pedro, enfaticamente, disse:
- Quem vê demais, ouve demais, nunca mais dorme em paz. Não estou brincando. O senhor está vendo o que realmente é.
Seu Leleco, que era manco, angustiado balançou a cabeça desaprovando aquelas palavras, e  replicou dizendo:
- O senhor é muito estranho, não fala coisa com coisa.  Se não quer chamar a atenção, venha vestido como todo mundo; seja um de nós,  um igual. O diferente atrai, naturalmente, a curiosidade. Ainda mais em se tratando de um velório. Com uma conversa dessa, sem sentido, dizer que é Repórter de São Pedro e que a alma...  Que besteira! Que loucura! Nem sei porque estou emprestando os meus ouvidos a tanta asneira.
O repórter de São Pedro, disse:
           Já dizia o profeta: “Virá o Senhor daquele servo num dia em que  não o espera, e à hora em que ele não sabe.” (Mt.24:50). Por isso, estou  relatando a despedida do morto e revelando a reação de cada um aqui, inclusive a sua. Ser ou não ser diferente não é o caso. O caso é tão somente transladar o acontecimento para a minha agenda e endereçá-la depois para o meu superior... Nunca gostei de me aparecer  quando era vivo, nem mesmo nas comemorações dos meus aniversários. Afirmo que somente o senhor está me vendo. Não sei o porquê, mas só o senhor pode me ver.
Engasgando-se nas próprias salivas, seu Leleco, arregalando seus olhos negros, surpreso, indagou-o:
- Puxa! Então o senhor é um anjo do céu mesmo?  É aquele que veio buscar a alma do morto?!
O repórter de São Pedro, respirou, e disse:
- Não. Ainda não conquistei esse poder tão miraculoso. Quando olho ao páramo e o vejo tão lindo, entendo o poder de Deus. Estou trabalhando para que um dia eu possa alcançar esse objetivo. Estou numa dimensão divina, mas desejo a purificação total. Fiz boas obras na terra... Mas,  adentrar  a porta do céu é muito difícil, ela é muito estreita... ficar na fila já é difícil, mas, ser escolhido é quase impossível... depende muito da alma de cada um.
Nesse momento seu Leleco silenciou-se... e sua consciência lhe confidenciou: “Este homem não é doido. É um sábio ou um profeta, ou um santo; mas, doido não é.” E perguntou:
- Tire-me uma dúvida: como São Pedro pode ter o relatório de todos os defuntos do mundo? Afinal, são milhares por dia, não é? Morremos de tantas formas: de doenças, de fatalidades, de balas perdidas;  e de tantas guerras: a da fome, a da frustração, a da ignorância, a do tráfico de drogas, a do trânsito e a de guerras de nação contra nação, enfim, são tantas formas de morrer por dia, como enumerá-las, registrá-las?
O repórter lhe respondeu, dizendo:
- O senhor tem toda a razão, não sou doido... Faço parte da O.N.E.C.  – Organização Não Espiritual do Céu... Sou um voluntário a serviço de São Pedro. Todo voluntário, seja na terra  ou no céu, é  bem visto pelos  olhos de Deus. Por isso, em cada velório, chovem candidatos.  Para  cada morto disputam, no mínimo, sete candidatos,  um instrutor e dois ajudantes;  um anjo só vem fazer este seviço quando se trata de um espírito superior... quando o  caso é  especialíssimo.
Seu Leleco, curioso que era, perguntou:
- Mas, o que o voluntário e o morto ganham com isso?
O repórter, enfaticamente, respondeu:
- Cada um ganha o que merece... O voluntário recebe uma espécie de bonificação dos pecados... O morto, através deste dossiê do adeus, que é  uma espécie de folha corrida,  ganhará ou não uma senha para  entrar na fila do céu.
Seu Leleco enrugou  a testa e disse:
- Mas, além do homem “bater as botas” ainda vai ter que passar por essa peneira... Coitado! O senhor não acha que todo o pobre deveria ir direto para o céu, sem passar por esse vexame?
O repórter, entendendo a simplicidade e a ignorância do seu Leleco, disse:
- Cada alma será julgada de acordo com o que semeou na terra. Afirmo para o senhor que felizes são aqueles que têm a chance de ir para a fila de São Pedro. Muitos desejam isso, mas, poucos conseguem entrar na fila, e somente os escolhidos, a dedo, conquistam esse direito. Nesse caso não conta a questão financeira, política, bens materiais, o que conta é o que foi o coração da pessoa, se foi bom ou mal.
Seu Leleco, de supetão, perguntou ao repórter:
- O senhor lê o pensamento de todo mundo?
O homem do além,  meio encabulado, pego de surpresa,  respondeu:
- Não. Nem sempre. Faço isso somente quando tenho a permissão do meu superior.
Aproveitando a oportunidade, seu Leleco perguntou:
- Dói morrer? Ou a passagem dói muito mais?
O repórter de São Pedro disse categoricamente:
- Dói muito.  Mas, triste mesmo, é assistir ao sofrimento dos que  ficam perfilados  na rua  do inferno, chorando, clamando perdão tardiamente...  Essa é a pior dor, é dor infinita. A passagem é como uma viagem virtual, como um passeio, mas, que,  ao despertar,  vai conhecer a sua fila: ali começa o céu ou o inferno.
Seu Leleco, impressionado com essa resposta, pensou: Vou procurar uma igreja hoje mesmo,  vou buscar a palavra de Deus para ser a minha luz, o meu guia e minha salvação.
O repórter de São Pedro, terminando o seu trabalho, disse para o seu Leleco:
- O  corpo morto ficará  no esquecimento. Na sepultura não terá momento. Não fará mais obras, nem indústrias, nem ciência, nem coisa alguma,  porque não será mais existência. Tornar-se-á pó. Sua sorte estará lançada...  Sua alma é que será julgada conforme  sua encarnação. Que os vivos sejam inteligentes, porque  é melhor ser um cão vivo do que um leão morto.
E, falando isso, desapareceu.