Com o rio na alma

Foto de cathy correia

É fim de tarde na vila, o ar cálido abraça-te a pele que pede um banho… e os pássaros escondidos por entre a folhagem, no cimo das árvores, embalam os restos de mais um dia de Verão. Aqui e ali passa alguém, com o passo apressado, na ânsia de chegar logo a casa.
A estrada que vai dar ao rio agora raramente vê gente, a pouca que lá vai é porque lá mora ou tem lá algum familiar. Já foi sítio de burburinho, passeio de domingo, vaivém incessante de pessoas e carros, agora dormita… entre ruínas e terrenos baldios onde já só os cardos e ervas daninhas medram; quando chuvisca e é tempo dele, há apanhadores de caracóis… o saco na mão a encher para o petisco, sempre feito em família.
Ao fundo, quedam-se as casas, simples casas de gentes igualmente simples, com o seu quintalzinho à volta onde costumam brincar as crianças mas, só nas férias de Verão quando os pais regressam à origem para reverem a família e o rio.
Esse rio que lhes percorre as entranhas como se de sangue se tratasse. Não importa o tempo ou a distância, o azul das águas enfeita-lhes sempre o olhar.
A vida é árdua por estas paragens, mas eles não se importam, fizeram do rio a sua casa. Alguns, para ser sincera, diria todos os mais velhos, nasceram nos barcos que os sustentam: saveiros; uma maternidade suavemente embalada pelo marulhar das ondas contra o cais. E quando o tempo era ingrato para a pesca e era altura, faziam trabalhos sazonais nos campos, em vez de redes empunhavam enxadas e com as mãos fertilizavam a terra, a que era a sua segunda casa.
Manuel Pechirra é um velho pescador, com um olhar manso e com a pacatez no gesto e no falar, fruto de muitas madrugadas esperando pelo peixe que o rio havia de o presentear. Deslocava-se sem pressas e, quando falava com os outros leva sempre um sorriso nos lábios e na voz a musicalidade do rio; moreno, uns olhos azuis enfeitam-lhe a pele tisnada pelo sol de muitas estações, as estradas do rio conhece-as de cor. O rio é seu amigo, tem-lhe respeito mas não o teme, limita-se a aceitar o que ele lhe dá: umas vezes, redes vazias; outras, pão para a sua mesa.
Manuel faz parte de uma terceira geração de pescadores e, nunca conheceu outra casa a não ser o rio e o barco onde foi criado entre redes, canastras de peixe fresco, com um céu coberto de estrelas como cobertor. Aquelas vedetas e saveiros, ondulando no doce carinho do Tejo viram-no nascer, crescer, fazer-se homem, constituir família… agora mora numa casinha modesta do bairro dos pescadores, que foi aumentando conforme podia e ia tendo necessidade. Uma casa onde, quando o Inverno é mais duro, a água de um Tejo revoltado consegue tudo cobrir e fazer andar numa roda-viva; embora Manuel tenha já aprendido a ler os sinais que a natureza lhe envia e, põe antecipadamente tudo o que pode a salvo.
É dos poucos que recusou abandonar a sua fonte de sustento, a sua alma não aceita estar enclausurada entre quatro paredes e os seus ouvidos querem apenas escutar o marulhar suave das águas a beijarem as margens, além disso não consegue imaginar a sua vida sem a visão matinal do rio, aquele que lhe corre nos olhos e nas veias.
Mesmo com dificuldades sente-se rico e feliz… pois possui a carícia do nascer do sol e o abraço terno da chuva miudinha do começo de Primavera. E haverá coisa melhor do que embalar os sonhos deitado a todo o comprimento por cima das redes dentro de um barco dançando nas águas?!?
Toda a sua vida, a sua já tão longa vida só conheceu esta realidade, dia e noite o rio comanda a sua vida, por vezes à noite na taberna do Broas entre uma rodada e outra contam-se as últimas e joga-se uma partida de sueca ou então matraquilhos numa mesa já gasta pelo uso e pelo passar dos anos.
Com as mais variadas redes o Pechirra apanha tudo o que o rio lhe oferece. Enguia, corvina, sável, robalo… agora já não há tanta quantidade, mas em abono da verdade a culpa não reside apenas nas barragens ou nas descargas ilegais… as redes de arrasto e com malha mais fina também fizeram a sua quota-parte.
Por vezes quando chega ao cais, depois de mais uma madrugada de labuta, junta-se com os demais companheiros e, após uma bela caldeirada regada a tinto discute com os seus pares e juntos exercitam a má-língua: quem casou, divorciou, quem governou bem, o que poderia ser feito melhor… não é à toa que chamam àquele largo protegido por duas árvores frondosas “ Cantinho da Censura”, ali pode-se cortar livremente na casaca de quem se quiser, entre uma gargalhada e outra.
Cada vez mais se lembra de Maria do Mar, a sua fiel companheira de todas as horas.
Conhecera-a numa madrugada chuvosa em tempo de”eirós”. Nesse dia a pesca foi outra… ao prepara-se para baixar a rede, ouviu no silêncio da madrugada um ruído de algo a cair ao rio e, logo se ouviram gritos que para ele soaram a cânticos divinos:
- Socorro, quem me acode! Ai, que me afogo!
Largou a rede ecom a força de braços habituados a trabalhar duro, levou o barco para perto da moça que havia caído ao rio. Estendeu um remo e uma mão alva como a neve agarrou-se pronta e firmemente a ele; tirou-a daquela água fria que parecia abraçá-la. Era tão leve, Pechirra mal sabia ler mas a sua alma sabia bem o que era poesia e embora nunca tivesse visto uma, aquela moça foi para ele qual sereia trazida para o encantar. Morena, tez alva, uns olhos verdes que faziam lembrar as lezírias na Primavera e aquela boca arfante, vermelho papoila era uma visão do outro mundo. Era filha das gentes da vila e embora fossem raros, por vezes os namoricos e casórios entre “ciganos do rio” e os “filhos da terra” consumavam-se e duravam para sempre, como se a terra pudesse conter toda aquela corrente.
Casaram numa boda que durou três dias e da união dos seus corpos tiveram quatro filhos, apenas o mais velho quis continuar a tradição; os outros partiram com os olhos cheios de sonhos, na bagagem mais alguma instrução que os seus pais algum dia tiveram. As raparigas quiseram seguir a via do ensino, o outro rapaz emigrou para a Austrália onde agora gere um rancho, pediu ao pai que fosse viver com ele, mas Manuel não suportaria viver tão distante. Em Agosto reúnem-se todos naquela casinha modesta que os criou, revêem afectos, entrelaçam carinhos… falam de projectos, riem juntos, voltam a ser uma família de novo.
A sua Maria há alguns anos adormeceu, deixando Pechirra órfão de amor, nunca mais quis saber de outra mulher, embora na altura ainda fosse novo e as velhas solteironas bem lhe tentassem chamar a atenção. Para ele, o seu coração morreu quando ela soltou o seu último suspiro naquela cama de hospital, vítima de uma pneumonia, sem ter podido ver o rio uma vez mais. Repousa agora no cemitério numa campa de onde através do portão de ferro forjado se avista o rio… e todos os dias, ao fim da tarde, Manuel senta-se à beira da sua campa, sempre coberta de flores que ele tem o cuidado de manter viçosas regando-as amiúde. A sua Maria apesar de ter adoptado o rio nunca deixou de amar a terra, e tinha imenso orgulho no jardim da sua casa que tratava com esmero e paixão… e ele continuou a tarefa dela, pois sentia que cada vez que erguia os olhos para contemplar o céu ela lhe devolvia um sorriso junto com a carícia trazida pela brisa das madrugadas.

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