Uma história de lua e paixão

Foto de Quel Rocha

Título: NOITE DE LUA LUANA
Quel Rocha
Categoria: adulto

Fazia uma daquelas noites, na qual, não se duvida da existência da eternidade, mesmo se encoberta pelas teias da solidão.
Luana, sentada sobre a mureta de sua casa, deixava crescer sob os olhos dois bolsões de tédio. Naquela noite interminável, alguém ao longe ouvia um rádio e da igreja badalava o sino, marcando as horas e a melancolia da moça.
De quando em quando, o cansaço deitava-lhe os olhos, porém, antes que o sono a vencesse, despertava depressa, decerto com medo de ver nascer outro dia, que malgrado seu, que desse continuidade a sucessão infindável de manhãs e tardes que passavam por ela.
Eu e meu amigo brincávamos ainda pelas poucas ruas largas e sem asfalto do vilarejo. As casas simples enfileiravam-se, com suas cerquinhas de madeira, uma ou outra possuía um muro, cuja pintura se misturava à cor da poeira. Cercado por bosques e longe da cidade, nosso bairro mais parecia uma ilha. Duas vezes por dia, quando não chovia, passava o ônibus coletivo, vinha buscar e trazer os homens e as poucas mulheres que trabalhavam nas fábricas da cidade, era nele que iam e voltavam nossos pais. Gostávamos de correr atrás dele nos misturando aos cachorros e engolindo a poeira que levantava pela estrada, não sei porque, ríamos muito disso.
Lembro-me que mamãe reclamava muito, da terra, da distância, da falta de conforto e principalmente das bostas de vaca e de cavalo espalhadas pelo caminho. Mamãe falava como se os animais fizessem isso só para as pessoas distraídas pisarem. Mas eu e meu amigo pisávamos de propósito, gostávamos de ouvir o barulho. Eu não entendia porque ela reclamava tanto, quando ela começava a falar sobre sua vontade de morar na cidade, eu ficava bem quieto ouvindo...parecia-me um lugar interessante, para mim a vila não era ruim, muito pelo contrário. Não! Decididamente, eu não queria ir embora, pelo menos não agora. Não raro, pedíamos emprestados os cavalos do pai do Betão e cavalgávamos pelo bosque indo terminar o dia na lagoa.
E hoje, passados os anos, talvez porque a rudeza do asfalto impeça o reflexo da lua, é que me recordei da história de Luana.

Voltemos a ela em sua mureta... Ali, do encantamento natural de meus doze anos, poderia ficar horas a fio observando Luana, cujo olhar mantinha preso no céu. O luar crescia e refletia em seu rosto muito branco. Mais parecia uma outra lua na terra. Havia até esquecido de meu amigo surpreendentemente do meu lado, tão parado quanto eu. De repente comentou:
_ Cara, você viu como a cara dela é branquela? Ei, olha o jeito dela. Por que será que ela fica assim? Será que é louca?
Não respondi as indagações de meu amigo. Limitei-me a resmungar...
_ Ela é bonita...Às vezes o vento levanta a saia dela e aparecem as pernas...Parecem macias.
Meu amigo, mais novo que eu, não demonstrou entusiasmo.
_ Já sei! E se a gente jogasse a bola na cara dela? Vamos! A gente joga e sai correndo para a casa do Betão! É logo ali e...
_ Cala a boca! Olha o que a Luana está fazendo.
Com o olhar fixo como que enfeitiçada, a moça comportava-se de maneira estranha. Começou a abrir um sorriso e devagar foi descendo do muro e de sua tristeza; caminhava na direção de algo ou de alguém que só ela via. Meu amigo começou a rir baixinho, dei um cutucão no braço dele para que se aquietasse. Não queria perder nada. Luana abraçou o ar e se pôs a dançar sem parar. Seu vestido agora se erguia mais e podíamos ver suas pernas muito brancas e agitadas. De repente, saiu correndo em direção ao bosque, no final da rua. Nós a seguimos pelo outro lado. Ela entrou no bosque e parou diante do lago. Pensamos que ela ia se matar. Meu amigo arriscou:
_ E se ela pular, você vai salvar?
_ Não sei...e se ela for um fantasma?
_ E eu não sei nadar...
Para nosso alívio nada disso aconteceu. Luana começou a dançar novamente e, vez por outra, abraçava o seu “alguém” invisível. Dançou até cair exausta, estava ofegante.
Dei a volta no lago, deixando meu amigo para trás, escondido sob uma árvore, estava com medo e enjoado da brincadeira. Não era o meu caso. Mesmo com medo, fui me aproximando de seu corpo até poder ouvir sua respiração bem de perto e sentir seu cheiro. Era um cheiro doce... Mas, para minha surpresa, o melhor ainda estava por vir. Seu braço estendeu-se num gesto rápido e alcançou meu pulso. Fiquei estarrecido. Naqueles poucos segundos pensei muita coisa, pensei que fosse me bater, xingar ou quem sabe afogar-se no lago.
Porém, Luana abordou-me com uma voz agradável:
_ Menino, o que você quer?
Timidamente respondi:
_ Eu...Bem... Eu queria deitar no teu colo, mas estou com vergonha.
Meu colega, do outro lado, cansado de me esperar e perplexo com a cena, gritou:
_Sai dessa, cara! Vai ver essa louca é uma vampira e vai chupar todo seu sangue! Vou contar até dez, se você não vier eu vou embora! Eu já não podia recuar, a vontade de experimentar aquele colo convidativo era muito grande e, então, sentindo bem forte o cheiro doce dela, encostei minha cabeça de menino em seu colo branco, quente e tão macio quanto imaginei. Fiquei quieto enquanto ela acariciava meu cabelo e cantava distraidamente uma música que eu não conhecia. Até que, como menino que era, sem trava na língua, destampei a falar:
_ Sabe Luana? Isso, mais aquilo, mais aquilo outro, blá, blá, blá...
(acho que acabei contando toda minha vida para ela). Ela escutava, e algumas vezes sorria serenamente. Finalmente, arranjei coragem e perguntei:
_ Com quem você estava dançando?
_ Como? Você não viu?
_ Não
_ Ah, menino! Então você não sabe? É meu namorado, ele chegou hoje.
_ E como ele é Luana?
_ É lindo, tem uma boca macia - falava como se eu não estivesse ali.- Passeia assim...pelo meu corpo. Ele foi chegando, chegando, sorrindo e me abraçou tão ternamente, que eu pensei que o sol estava nascendo...- Impossível, a escuridão da noite continuava lá, insistente, cobrindo com seu véu azul marinho o mundo todo.
Enquanto eu pensava, Luana calou-se, deixando-me curioso e impaciente.
_ E aí Luana? Continua!
_ Eu me entreguei.
Diante da minha cara de idiota, ela completou:
_ Você não vai entender isso agora, só quando crescer. Ah! Estou me sentindo tão bem que estou com vontade de festejar.
Disse isso, desvencilhou-se de mim, pulou na água e sumiu. Estremeci. Não sabia o que fazer, ela não voltava mais, e eu desesperado tentava tomar coragem para pular na lagoa. Quando finalmente me decidi, ela saiu da água sorrindo, com seu vestido claro colado ao corpo. Veio em minha direção, sentou-se ajoelhada a minha frente, e disse-me:
_ Senta aqui menino. Sentei-me imediatamente e meio sussurrando ela foi dizendo:
_ Vou te contar um segredo. Eu conheço um lugar que ninguém conhece, talvez fique em alguma estrela, em breve eu vou morar lá, e ninguém mais vai me achar, só você vai saber onde vou estar.
_ Como assim? Eu não sei onde é. Por que você não me leva até lá?
Leve-me Luana, por favor...
_ Ora, não se aflija, tenha paciência, um dia você saberá.
Luana olhava agora fixo para o céu, uma chuva fina começava a cair. Meu amigo a muito tinha ido embora. De novo ela sorria para o horizonte, seus cabelos
iam ficando mais molhados pela chuva e cobriam parte do seu rosto. Disse-me, sem me olhar:
_ Vá menino! Vá embora!
Obedeci, porém fiquei ainda de longe espiando. Ela se distanciava como se estivesse sendo levada pela mão. Não sei bem, mas de longe parece que vi seu corpo desfalecer. Mas o cansaço chegava com força e eu não tinha outro remédio senão ir para casa, enfiar-me debaixo das cobertas sem acordar minha mãe, afinal, devia ser bem tarde.
Cheguei em casa e cruzei a porta da cozinha pisando na ponta do pé para não fazer barulho, entrei no quarto e vi aquela chata de minha irmã deitada na minha cama, fui obrigado a me espremer no velho berço dela.
_ Que droga! Dormi.
Acordei. A chuva havia passado e o sol já estava bem quente. Ouvi um grande burburinho de mulheres em casa, parecia ser uma conversa séria, destas que criança não pode escutar. Fiquei atento. Minha mãe conversava com duas vizinhas, ouvi que falavam de Luana. Saltei do berço depressa com as pernas trêmulas, esgueirei-me até a cozinha em tempo de escutar...
_ Então, quer dizer que acharam o corpo dela, é?
_ Meu Deus! Uma moça tão nova, o que será que aconteceu?
_ Ah! Dona Berenice...eu já ouvi dizer que ela não batia bem da cachola.
_ Será verdade, dona Rosa?
_ Pois é, diz que ficava horas olhando pro céu, di noite, conversava com gente que não existia e vivia com papel e lápis rabiscando umas tar de poesia.
_ Ah! então tá expricado. Gente metida cum poesia é meio louco mesmo, nunca vi um que prestasse. Se num se alembra do marido da dona Joaquina? Não queria sabê de trabaiá, ficava pus bar tocano viola e escrevendo versinho pra tudo quanto é mocinha aqui da vila e inté prá muié dele chegô a fazê verso. Um dia, eu fiquei cum pena do pobre. Ela gritava assim:
_ Vá limpá a bunda co’ esses seus escritos, pois que não serve prá cumê.
_ Coitado do home...Fazê o que se tinha a mente fraca, num é mesmo, cumadre?
_ Oia , quando se nasce em berço rico, vá lá...Mas, pobre feito o diabo, tinha mais que trabaiá....blá, blá, blá...
Atordoado com aquela conversa, eu só conseguia pensar no corpo branco de Luana estendido na grama verde e molhada do lago, quem sabe se os passarinhos não a estavam comendo. Saí correndo. Fui chegando próximo ao bosque, meu coração faltava explodir, lá estava ela, de longe via seu vestido, agora mais claro, sobre o verde do chão. Perto dela, apenas um velho negro e magro, estava meio curvado e carregava o chapéu junto ao peito. O vento
balançava sua camisa aberta e amarrotada, enquanto ele olhava para aquele rosto jovem com seu olhar castigado pelo sol e pela labuta, suas mãos grossas e queimadas estenderam-se rústicas sobre a pele macia de Luana e encostando delicadamente as pontas dos dedos na sua testa e, num gesto paternal, fechou-lhe os olhos. Vi, então, que deixou escapar uma lágrima, que decerto há muito tempo devia estar ali, escondida sob as rugas de seu rosto, esperava para cair como uma tarde, que soubesse que o dia não vai mais amanhecer. Chorei.
Enterraram-na num caixão branco, quando perguntei a razão daquilo à minha mãe, minha irmã interferiu com a chupeta na boca (ela era metida a inteligente):
_ Cheu bobo, é porque ela nunca teve namolado!
Fiquei bem quieto, sabia muito bem que ela tinha um namorado invisível.
Minha atenção voltou-se novamente para o rosto de Luana impassível naquele caixão, pensei que se eu fosse um desenhista iria desenhar aquele rosto. Mas parecia mentira ou alguma espécie de pesadelo que aquele colo estivesse ali frio e imóvel, me perguntava porque suas pernas não se levantavam de repente para dançar como ela fez naquele dia. Gostaria de vê-la correndo em direção ao bosque, olhando estrelas com seus papéis e lápis ou ainda abraçando o seu amor invisível. Meu amigo do meu lado, adivinhando meu sofrimento, vez por outra apertava minha mão.
Naquela noite o pouco que dormi sonhei com Luana, e no sonho sua brancura era absurda, resplandecia.
Os dias foram passando e aos poucos a história de Luana foi virando lenda, confusa entre a realidade e fantasia.
A vida na vila seguia sua rotina. Mamãe continuava reclamando:
_ Um dia, vou embora daqui!
Enquanto isso, o ônibus coletivo levava e trazia papai todos os dias e eu e meu amigo cavalgávamos pela poucas ruas largas e sem asfalto. A novidade foi que o marido de dona Joaquina voltou, implorou o perdão da mulher e esta, por pena ou por solidão, aceitou – o . Ele agora andava novamente de bar em bar, que, aliás, não eram muitos na vila, dessa vez cantando a lenda de Luana que ouvira do pessoal da vila. Às vezes, à tardinha, eu e meu amigo ficávamos na porta do bar ouvindo...
"Não estranhe minha gente/ que por aqui apareceu/ Uma moça muito calada/ Que olhou estrela, amou e morreu/...Não assuste ainda/ com essa morte certa/ Porque morrer de amor/ É ofício de poeta..."
E assim continuava ele na sua cantilena monótona.
Quando íamos nadar no lago, meus olhos detinham-se por um tempo sobre uma cruzinha branca que aquele homem velho deixou fincada na grama onde achou o corpo de Luana.
Há muito tempo deixei o bosque e o vilarejo, faz uma noite longa, e vozes eletrônicas se confundem, não ouço mais badalar o sino da igreja, apenas carros que passam freneticamente, apesar do adiantado da hora. Agora moro na avenida mais larga da cidade. Não consigo dormir e ando pela calçada quem sabe buscando um refúgio...Talvez eu já esteja preparado para conhecer o lugar do qual Luana me falou, talvez sim...Talvez não...Com certeza ela saberia...Com certeza...

FIM

Fóruns: 
Foto de Stacarca

Oi Quel Rocha, ótimo enredo, os diálogos estão muito legais também, a história em si foi original, eu gostei. Abraços...

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