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Foto de Lou Poulit

O Caminho é o Mestre.

Precisei viver muito, cair e levantar muitas vezes, para legitimar no meu silêncio a simples impressão de que tudo valeu a pena, por ter aprendido algumas coisas. Há tantos anos que nem me lembro mais quando foi, li sobre o conceito cabalístico de amor. Achei que era uma coisa muito bonita, mas impossível de se conseguir. Parecia um paradoxo existencial insolúvel, porque parece pressupor o sacrifício da individualidade própria e sem ela, ainda que consigamos pisar no horizonte, não poderia haver nisso um mérito nosso, já que não terá sido uma obra nossa. Guardei o conceito com carinho numa das últimas gavetas da alma.

Os anos se sucederam e através deles uma aparentemente infindável sucessão de logros e malogros, que deixavam uma coisa cada vez mais clara e insofismável, na minha alma obstinada e penitente: as melhores coisas que havia conquistado não eram aquelas pelas quais me dispusera a tantos sacrifícios, não eram a montanha, mas sim as que em algum momento me pareceram uma pedra suficientemente firme, para enterrar o cravo e continuar a escalada. E isso foi verdadeiro em literalmente tudo. Sabia exatamente o que queria e, quase sempre, soube encontrar meios de prosseguir. Mas não sabia o mais essencial.

Não sabia que nossas ambições são como uma miragem. Ainda que sejam alcançadas, podem durar bem pouco nas nossas mãos. Mesmo porque logo precisaremos desesperadamente de um novo objetivo, uma nova referência para que possamos canalizar nossa energia. Precisaremos fazer isso, ou teremos a impressão de que todo o universo, em seu legítimo direito de prosseguir, está nos atropelando lenta e minuciosamente. Talvez possamos parar para comemorar uma conquista, ou nenhuma conquista, como fazemos mais freqüentemente, e assim exercer nossa auto-estima, e simplesmente não querer mais nada. Porém não poderemos interromper a sucessividade das coisas, ou a transitoriedade de tudo.

Como não podemos assumir nenhum dos extremos do paradoxo, ou seja, não podemos ser Deus nem tão pouco um inútil grão de areia, a solução está necessariamente no meio do caminho entre um e outro. Não é como encontrar uma agulha no palheiro, ou um determinado grão na praia, é muito mais difícil que isso!

Às vezes, por minha própria experiência, tenho a impressão de que posso propor uma solução: desconcentrar o foco. No entanto, preciso esclarecer uma coisa da maior importância: Quando digo desconcentrar o foco não estou defendo nenhuma abstenção, negligência ou leviandade generalizada, como pode perecer. Mas sim, muito ao contrário, redistribuir o feixe, contemplando mais as pequenas coisas do caminho, que estão sempre tão perto da gente; e nem tanto no horizonte, em cuja distância o foco talvez se perca irremediavelmente.

Isso não é nada fácil, concordo, mas deve ser uma espécie de aliança profícua. Sim, uma aliança porque assim daremos ao universo a oportunidade de participar muito mais proveitosamente das nossas conquistas, de nos oferecer alternativas, enquanto damos a nós mesmos a oportunidade de exercer mais legitimamente o nosso livre-arbítrio. Porém, aqui cabe um alerta: Não se deixe iludir pelo seu conceito vulgar e tão divulgado: O tal livre-arbítrio, instituição criada a partir textos inspirados, não pode ser o direito absurdo de fazermos o que bem entendermos. Crer nisso seria subestimar a inteligência do Grande Legislador, depois de superestimar a nossa. Não é minimamente razoável.

Vejo isso da seguinte maneira: suponhamos que você tenha dito ao seu filhinho amado que parasse a brincadeira para fazer o dever de casa. As crianças nunca têm pressa para aprender. Na verdade, ao fazer seus exercícios, querem mais se livrar da obrigação do que aprender o que os adultos pensam ser necessário. Ora, se você lhe desse dois ou três cascudos mais alguns gritos, certamente ele faria os seus exercícios e alguma coisa sobre a matéria haveria de fixar na mente, além dos cascudos e gritos, claro. Mas tenho a mais cristalina convicção de que você se sentiria um pai/mãe muito melhor, se ele resolvesse fazer o dever e aprender por conta própria! Sem precisar de qualquer penalidade. A evolução dele e a sua satisfação seriam muito mais legítimos e perenes. Pois aí está, para mim, o sentido verdadeiro do livre-arbítrio, dentro dos limites da mente humana. Até onde a criatura e o criador eram uma coisa só, não poderia haver esse mérito. Então, porque resolvemos criar nossos próprios objetivos e expectativas, e engendrar os meios para isso, passamos a precisar dessa instituição. Porque Deus, que não pode ser um pai menor do que eu ou você, prefere não nos arrastar para casa pelos cabelos. Na verdade não se trata de uma liberdade, mas da oportunidade de escolher bem e com responsabilidade.

Então, juntando tudo, creio ter uma boa proposta. É simples e não tem o rigor hermético imposto pelas instituições dogmáticas, que também tendem a priorizar suas próprias necessidades: focamos o horizonte apenas para que tenhamos uma referência de direção; depois criamos focos nas pequenas coisas que estão em nós, à nossa volta, entre nós e na mesma direção que escolhemos. Sem perceber, estaremos abrindo mão de uma parte do nosso ego cabalístico, aquele que quer satisfazer a si próprio, entretanto, também estaremos sintonizando a energia cósmica, que quer satisfazer a toda criatura, humana ou não, que possa escolher, segundo as preferências de cada uma. Além de satisfazer, segundo a Sua preferência, a todas as demais que não podem escolher por si.

A polarização sexual dessa questão é muito bem representada por um mito antigo: Os deuses do Olimpo estavam prestes a se unhar, por não haver consenso sobre quem teria mais prazer no amor, se o homem ou a mulher (uma questão que, hoje, a ciência responderia facilmente). Então Zeus, tido como grande sedutor mas que, provavelmente, era um péssimo amante, mandou chamar um semi-deus, por sua vez tido como apaziguador. Não podendo recusar a missão que lhe fora confiada, este meditou um pouco e depois afirmou categoricamente (sem a tecnologia atual): Quem tem mais prazer no amor é a mulher... Liderado pela extremada deusa Hera, mui traída esposa de Zeus, o bloco dos feministas já estava começando a sua festa. Mas, olhando os olhares inchados de raiva dos machistas, ele completou: ... Mas o homem é quem o provoca. E assim, enquanto o bloco dos machistas fazia a sua festa, a enfurecida Hera cegou o pobre semi-deus. Na tentativa de ajudar os que queiram compreender melhor a inexplicável sabedoria dos antigos, aqui vão versos definitivos de Vinícius de Moraes, da sua “Brusca Poesia da Mulher Amada”:

“...E de outro não seja, pois é ela
A coluna e o gral, a fé e o símbolo, implícita
Na criação. Por isso, seja ela! A ela o canto e a oferenda
O gozo e o privilégio, a taça erguida e o sangue do poeta
Correndo pelas ruas e iluminando as perplexidades.
Eia, a mulher amada! Seja ela o princípio e o fim de todas as coisas.
Poder geral, completo, absoluto à mulher amada!”

O verdadeiro amor só pode ser isso: O sentimento de querer bem e de satisfazer as pessoas/coisas amadas. E para dar certo, basta que aquele que ama seja uma das pessoas amadas. Ponto passivo: não existe uma matemática humana para o amor, essa coisa de determinar de modo fixo um ponto entre os dois extremos. Tudo bem, mas não estaria exatamente nisso o mérito? Veja, essa exatidão fixa, humanamente lógica, redundaria em mais uma estrutura ideológica capaz de engessar a psiqué e atrair o foco para o ego. Ela não é necessária. Mais importa que se exerça a vida, a alma, que se ame e que se cresça. A alma é o maior objetivo, o amor é o meio mais eficiente, e o caminho, quanto mais escuro mais guarda estrelas: É o mestre!

Foto de Senhora Morrison

Liberta

Livra-me do seu sentimento de posse.
Amar, não sabe o que é.
Livra-me do seu moralismo vil.
Honra, nunca tivestes.

Ris da dor alheia
Mas não suporta a tua própria
Engenhava-me mais sofrimento
E tivestes minha devoção!

Chama-me verme
Julga-se forte, viril.
Mas faz-me seu escoro
Seu chão, para que pise, pise...

Só sabe ploriferar o medo
Ganhas-me no grito
Violenta minhas entranhas
Sempre que se sente só

Eu que parecia lhe dever
Nunca ousaria seus olhos
Dei-te a submissão
Fui-te um depósito de gozos, esporros...

Era só o que valia
Só o que me fazia valer
Diante de um semblante psicótico
Acompanhava-me da incapacidade

Almejar-se-ia seu reconhecimento
Se não lhe descobrisse agora
Tão fraco, tão fora.
De realidade que ainda desconheço

Tu foste meu primeiro, meu único.
E com mãos de ferro
Marcava-me com sua brutalidade
Com prazer em me sangrar

Jamais saberia ter força olhando estas marcas
Não poderia sequer tentar fugir
De sua presença negra e duras palavras
Mediante suas perspectivas

Nunca tiveste um horizonte
Não me mostraste as rosas do mundo
Deixara as pétalas a outras
E me enfeitava de caules e espinhos

Acostumaste-me a pouco amor
Mas minha alma já cumpriu sua sentença
Agora que com fôlego caminho para a luz
Sinto-te ainda mais agressivo

Nunca me ganhaste
Não me amedronte
Mesmo em flagelos irei recomeçar
Aqui ou em qualquer lugar

Vou curar minhas feridas
Com minha saliva
Tenho a mim
E isto me basta

A dor me abriu os olhos
Vejo-me tão capaz
Vejo que te suportei além
Sozinha será mais brando.

Suas ameaças já não me martirizam
Tão pouco o cumprimento
Nunca tive nada a perder
Não me destes nada

Vou antes de tudo acontecer
Antes que nada se faça
Ainda que respiro
Agora que me livro...

Então dormes homem
Que ontem foste digno do meu amor
Dormes que enquanto isso
Vou para onde não alcance seu cheiro

Que seja embalado em sonhos malditos
De murmuras e lamentos
E que quando desperte
Tenha uma vida em sofrimento

Aqui jaz tudo que fui pra ti
Neste ímpeto de coragem
Deixo-te, a querer que esqueça.
Que um dia existi...

Senhora Morrison
30/05/2006

Foto de Senhora Morrison

Coração Tranquilo

Mais um gole
Enquanto observo lá fora
Do alto,
Desta janela...
Sentindo o ar frio em meu rosto
Encolhendo-me como a querer proteger...
Proteger do que?
Se minha vontade...
É saber voar
Ir pra onde nada pese...

Meu corpo frio,
Meu cérebro a mil...
Somos pensantes
Ha, Ha, Ha...
Nunca somos um todo
Inteiro, de verdade.
O que me falta, já não sei.
E essa melancolia
Essa gana de não sei o que
Essa precisão...
Essa lucidez saudosa
De tempos, atitudes, horizontes...
Que se foram? Existiram?

Se tem alma
Este corpo a aprisiona...
Este corpo que padece
As ações do tempo
Das irresponsabilidades
De noites mal dormidas
Sabe-se lá com quem...
Sabe-se lá por que...
Dos tragos e tragos a mais...
Das risadas por diplomacia...
Dos choros por conveniência...
...desde o berço...
Dos amores por necessidade...
...de um colo no fim da noite de gemidos e fingimentos...
É tudo irreal, superficial...

Sou sozinha,
Sou uma peça,
Sou o desfecho...
...fundamental
Essa subserviência desnecessária
Esse interesse proposital
Essas décimas quintas intenções...
Não quero mais isso
Isso tudo me acaba
Isso tudo me sufoca

Mas não mata
Nunca mata
Nunca morre
Nunca mata...
O dia seguinte sempre segue
E ainda abro meus olhos
E ainda respiro este ar fétido
De gananciosa poluição
Não vale mais
Nunca valeu
Não tenho mais credibilidade
As fichas acabaram

Os sorrisos sinceros são milimetrados
Esporádicos, anulados
Por bombas caseiras e de efeito moral
Não dá pra ser inteiro,
Sou parte disso
Meus fragmentos sofrem
Como sorrir
Sinto meu sangue pulsar
Do outro lado dos continentes...
Com os mesmos olhos...
Que vêem o que não querem

Calo-me
Mas ainda vejo meu reflexo
Neste maldito espelho
Que não refleti o que o mundo determina
Mas...
Transparece a límpida alma
Que pouco importa
Sempre consigo me anular
Vou à busca dos meus
Este mundo não me pertence
Mas continua a flagelar
Pobres mortais
Dignos da esperança...
De etnias impostas por outrem
A condenar sem motivos
Desencorajando sonhos
Cortando as garras
E começando tudo de novo
Sem um fim plausivo

Agora recosto minha cabeça ao travesseiro
Sem alardes e acontecimentos
Deixo a inércia tomar conta
Do corpo
Da mente
Permitindo...
Querendo mais uma vez
Acalmar minha fúria
Atravessando uma senhora no farol...
Contribuindo pra cola com uma moeda...

Quem irá mudar o prisma do mundo...

Senhora Morrison
28/05/2006

Foto de Senhora Morrison

Não Permitam...

_Vejam!
A escuridão esta vindo
Encobrindo o horizonte
Ainda distante
Sugando as árvores
As nuvens, mesclando-se em cinza.

_Saiam todos daí!
Não conseguem ver?
A cidade continua apressada
Mas ela esta vindo...
Como a dançar
Entorpecendo o que encontra. Destruindo!

_Corram!
Não percebem que não podemos
Continuar com isso?
Ela se alimenta de todos
Os mau-dizeres
De toda mágoa
De todo ódio
De toda inveja

_Olhem!
Não posso ser a única a ver
As últimas pétalas estão a cair
Não se entreguem
As lágrimas sempre fortalecem
Não permitamos que os abutres
Petisquem nossa carne

O sangue há de correr
Nas veias... Somente.
Os olhares inocentes
Não podem ser recolhidos

Já que nos acostumamos
Com qualquer situação
Já que incondicionalmente
Somos limitados

Que nos limite-mos
Somente a amar

13/02/2007
Senhora Morrison

Foto de angela lugo

Bailando na chuva das lágrimas

Dançando entre os pingos da chuva quente
Que caiu de repente
Você vem e abraça-me fortemente

Vez ou outra vem o choro calmamente
Choro um amor contido
Ainda bem que tu me olhas docemente

Não podes imaginar meu sonho partido
Por te amar escondido
Um amor sem ser correspondido

Dançando na chuva vejo teu bailar descontraído
O amor nos dá maior percepção
Para sabermos quando estás distraído

Queria que tu tivesses sobre o amor mais informação
Sem deixar-me aqui nesta chuva em solidão
Bailando contigo e sustentando a minha condenação

Meu amor por ti é honesto e cheio de retidão
É alentador e acomodado
E quero que um dia ele saia da escuridão

Declarando a ti este sentimento que está sufocado
Dentro do meu coração
Não precisa ser aqui na chuva neste bailado

Pode ser em um dia quando tiver mais emoção
Quando você não estiver em clima de tensão
Procurando justamente por uma afeição

Sentir-se sozinho e não querer da vida somente ilusão
Então poderei te oferecer meus sentimentos
E assim doar-te o meu amor sem dimensão

Quando acontecer viverei intensamente todos os momentos
E quando assim em teus olhos encontrar o amor por mim
Enfim estarei ao teu lado com a alma repleta de contentamentos

Foto de angela lugo

Flecha certeira

Você foi a flecha certeira
que acertou em cheio
este meu pobre coração

Não adianta te perguntar
onde andou a me procurar
quando chegou logo tocou

Com estes teus olhos verdes
que como uma serpente
tão logo me hipnotizou

Lançou este teu veneno
em minhas tenras veias
que rapidamente andou

Mergulhou no vermelho
deste corpo derradeiro
que aqui te esperou...

Foto de angela lugo

Ai... Que dor n'alma!

'Sinto agora neste momento
a monotonia da vida...
Sem a tua presença
que preenchia todo meu viver
A canção da sua voz
que ecoava dentro do meu ser
A fragrância do teu cheiro
que exalava o perfume teu
O sabor dos teus beijos
que adoçava o meu querer
O aconchego do teu abraço
que me fazia reviver
Ai... Que dor n’alma!
Que me faz morrer
com esta agonia a me consumir
tornando-se um eterno sofrer
simplesmente por não o ter.
As linhas da vida...
Não conseguem coser esta ferida
que agora se tornou uma chaga,
abrasando meu coração
fragmentando-o pela dor.
Apertando-se dentro do peito
já em pleno desconforto
gritando a todo o momento
venha ao meu encontro
não agüentando mais...
Esta saudade de você meu amor

Foto de Lou Poulit

Amor por Obras de Arte

Sabe de uma coisa que me surpreende de vez em quando, a cada vez de uma forma diferente? O poder que têm os objetos de arte de fazer com que as pessoas desenvolvam uma relação psíquica absolutamente particular com elas. Já ouviu falar naquele sujeito que vai morar em um lugar mais valorizado, pinta a casa nova, troca todos os móveis, “...a velha calça desbotada ou coisa assim” (*), os sapatos, o carrão, o cachorro, troca até de mulher!... Aí quando o amigo (que não foi trocado) faz uma primeira visita... Não há como fingir que não viu, lá está aquela escultura, pintura, artesanato, ou seja lá o que for. Sem dúvida é a mesma! Se você nunca viu, prepare-se para conhecer um dia alguém assim.

Tenho uma cliente adorável. Comprou uma (apenas uma e nunca quis outra) pintura minha da série Bailarinos Elementais. Pois bem, segundo a própria, de manhã ela não vai trabalhar sem se despedir. A Bailarina fica o dia inteirinho quetinha na parede da sala, na mesma posição!, de frente para a porta, esperando que sua dona volte e diga boa noite, ou bom dia... Falando sério, quando ela me contou (foi assim mesmo, ela não deixou que ninguém contasse antes) pensei que fosse dizer que a Bailarina saía bailando pela sala... ou pior, que abrisse a porta pra ela!

Para que ninguém duvide, conto outra. Uma outra cliente, igualmente adorável, encomendou um Anjo Peregrino fazendo uma relação de especificações. Queria que o Anjo ficasse na cabeceira da cama, mas não o queria nu como os da série. Arrumei um jeito de cobrir as partes pudentas do jovem Senhor com algumas penas da asa. No dia marcado, ela veio buscar a pintura no final do expediente e saiu pela cidade toda serelepe. Até chegar em casa, com certeza deu muitas “pinturadas” em pessoas que queriam apenas chegar em casa íntegras. Pois bem, tomou sumiço... Cerca de um ano depois, eu estava expondo na feira turística de Copacabana e senti alguém me cobrir os olhos com as palmas das mãos, pelas costas para fazer surpresa: “Se você adivinhar, só pode ser um anjo”... Ora, passados mais de doze meses, até para um demônio haveria de ser difícil adivinhar que ela estava dando uma pista do anjo dela e que, portanto, tratava-se dela!... Conversa-vai-conversa-vem, perguntei pelo Anjo. Devo assumir ter parte de culpa, porque nesse momento eu próprio tratei o personagem como uma pessoa. E ela prontamente respondeu que estava lá no mesmo lugar. Querendo fazer uma piadinha, perguntei se ele nunca saía, nem para tomar um cafezinho ou, pelo menos, se espreguiçar. Então minha cliente, hoje uma boa amiga, me disse: “Sair ele não sai não... Mas às vezes eu tiro”. Naturalmente, pedi que explicasse. E ela me contou, com alguma timidez, que quando o namorado dela chegava, ela dissimuladamente ia no quarto (sem acender a luz), descia o Anjo do prego e o empurrava para baixo da cama! Não consegui me segurar. Não achei que pudesse ser uma indiscrição minha e quis entender a razão. Resposta envergonhada: “Ah... O seu Anjo tem um olhar muito severo”... E depois veio outra pior. A última risada dessa noite aconteceu quando ela me confidenciou que certa manhã, sentiu “pena” do Anjo e o reconduziu ao seu lugar, sem se importar com o fato de que o namorado ainda estava na cama. O resultado foi uma pergunta dele indignada, mas para mim surpreendente e reveladora: “Quem é esse cara aí?!”...

Foto de Lou Poulit

Antes Sujo o Verso Seja, Que o Homem em Quem Viceja

Meu Deus, lá se vai mais um ano! Mais um cano e eis que vejo: Porque ainda sou tão puro! Uma luz no fim do escuro.

Começar tudo outra vez... Tudo que se fez (sem trocadilho), do porão ao tombadilho. Tudo, tanto que se quis, e tudo mais que não se diz. Como arrepio que fugiu pela mente; pois somos gente, de carne e osso, e mesmo do fundo do poço vejo: Porque ainda sou tão puro! Uma luz no fim do escuro.

Se lá se vão, os anos não importam. Entortam-se os anos como pepinos: de meninos. E sem olhar pra trás!

Mas não confunda a barafunda que aqui faço (e não afunda) com o corcunda da igreja, que mesmo sem abraço beija o pé, que de pronto abunda! Deixem-me ser errado porque queremos, ao menos uma vez (e não porque queiram). Fui tão sério, tanto, tanto, quis tanto fazer tudo certo... Que mágica! Ao se virar a página, nenhuma coisa pode ser tão trágica.

Tome o poeta por assexuado, mas o homem é na verdade macho (e precisa usar desodorante). É facinho, mas é macho de fato. Com focinho e tudo, macho do mato. Da fruta e do flagra do flato!...

Basta, nunca fiz tanta bosta posta num espaço tão curto. Mas só assim me ameniza a lombeira de um ano inteiro, à beira de fazer uma última e salutar besteira. Antes sujo o verso seja, do que o homem em quem viceja! Em Notre-Dame, na Lapa antiga, nem a Cornélia boa de briga me escapa e nem à tapa me convence, que de tudo nada se aproveita. Se já me peita hoje com o sorriso (embora ela pense que economizo) não sabe na vida o quanto eu a desejo! E que por isso... Eis que vejo: Porque ainda sou tão puro! Uma luz no fim do escuro.

Nessa vida não há dois sentidos... Há três, quatro, cem! E todos tidos como sem-vergonhas, sem isso e sem aquilo. Mas não é um “self-service”. O poeta serve-se de palavras, crava as unhas no meu plexo e no sexo dos meus ideais (ais!), mas eu quero é mais, muito mais. O mais difícil: O Himalaia, a panacéia divinéia, até mesmo a Paulicéia, o Saara, o Everest, a Cachemira... Pois está na cara que se veste e depois se tira a fantasia! Para que só reste a luz do dia... Que seja a luz feliz dos olhos, de preferência dos olhos da vida!

Nada contra as luzes da virada. Mas seja a luz eternizada sobre o que se construiu pedra por pedra (ou seria pedrada por pedrada?), dia e noite, lembrança a lembrança... Porque nossa imensa andança, qualquer que fosse a distância, já tinha exato um endereço. Quero ser grato. Por ter pago o preço, por ter sido tanto tempo lapidado, para não perder agora o brilho do olhar.

Pois que venha o ano-novo logo! Assim volto a ser sério e rogo: não se apague em mim o sorriso da amada. Então, ainda que a minha estrela se apague, que o sol em zigue-zague, perverso caia no próprio escuro imerso, minha alma que ainda viceja gritará ao universo: Veja! Porque ainda somos mais puros juntos, uma luz no junto dos escuros!

Foto de Lou Poulit

O Beiço da Feiosa

Cansado demais para continuar meus trabalhos de pintura no ateliê, de falar com meu próprio silêncio, decidi dar um tempo a mim mesmo. Assim também, escapava um pouco do convívio com o senso crítico de artista plástico. Tinha e ainda tenho esse hábito. Em arte, faz bem de vez em quando apagar tudo o que há no consciente. Depois deixar que o subconsciente, onde de fato habita a arte, aos poucos recomponha toda a estrutura de critérios e conceitos. Fazia uma tarde morna e abafada, típica do verão carioca. A tática era escolher um lugar sossegado no calçadão da praia de Copacabana, de onde pudesse observar de perto as milhares de pessoas que vão e vem caminhando. O apartamento da rua N. Sra. De Copacabana, onde havia instalado o ateliê, era de fundos e de lá não se via ninguém. Um artista precisa observar, muito, como um exercício diário. Apenas observar e deixar que seu silêncio assuma o lugar do piloto. Então uma série de impressões, não apenas luz e forma, serão armazenadas. E quando ele voltar ao trabalho elas estarão lá, disponíveis no subconsciente.

Depois de alguns poucos minutos esparramado numa cadeira de quiosque, já havia conseguido reunir tantas observações que era difícil mantê-las na mente de modo organizado. E ainda mais concluir alguma coisa daquela bagunça. Tentei interromper a observação para fazer uma seleção prévia sem novos dados. Muitíssimo difícil. Minha mente estava de tal modo seduzida pelo que estava em volta, que não podia evitar o assédio da sucessividade. Sempre que sentia a alma crescer e “viajar” nas próprias avaliações, subitamente era trazida novamente ao fundo do abismo por alguma sensação irresistível, como num grande tombo, que só poupava a cadeira de plástico. Tentei fechar os olhos então, mas isso também se mostrou inútil, ainda pior. O estímulo causado pelas demais percepções, que dessa forma ficam mais conscientes do que o normal, era poderoso o suficiente para provocar a mais estranha angústia de não ver com os olhos. Reabri-los seria quase um orgasmo!

Mas depois de um obstinado esforço consegui finalmente identificar algo suficientemente freqüente e interessante: muitas pessoas aparentam imaginar que são alguma coisa muito diferente do que aparentam ser! Talvez ainda mais diferente do que na realidade sejam. Achou confuso? Não, é muito simples. Veja, o nosso senso crítico tem a natural dificuldade de voltar-se para dentro, ademais, os defeitos dos outros não são protegidos pelas barreiras e mecanismos psíquicos de segurança que criamos para nos defender, inclusive de nós mesmos. Por exemplo, um jovem apenas fortezinho e metido numa sunga escassa, parecia convencido de ser uma espécie de exterminador do futuro super-dotado. Um senhor setentão, parecia convencido de ser mais rápido e poderoso que o Flash Gordon (um dos primeiros desses super-heróis criados pela fantasia americana do norte). Uma mulher com pernas de uma cabrita, difícil descobrir onde guardara os seios, fazia o possível para falar, aos que ficavam para trás, com uma linguagem de nádegas, que na verdade mais parecia uma mímica de caretas.

Mas houve uma outra (essa definitivamente feia, tanto vindo quanto partindo) que me surpreendeu, me deixou de fato muito fulo da vida, me arrancou dos meus pensamentos abrupta e cruelmente: vejam vocês que ela torceu o beiço pra mim, em atitude de desdém, como se eu houvesse dirigido a ela algum tipo de olhar interessado... Onde já se viu?! Quanta indignação! Ora, se com tanta mulher bonita no calçadão de Copacabana, de todos os tipos e para todos os gostos, passaria pela cabeça de alguém que eu dirigisse algum olhar interessado logo para ela? Só mesmo na cabeça dela.

Assim que ela passou me aprumei na cadeira, levantei-me e tomei o rumo de volta para o ateliê. A princípio me senti muito irritado com aquela feiosa injusta, no entanto, como caminhar no piloto-automático facilita as nossas reflexões (embora aumente o risco de atropelamento) já a meio-caminho havia mudado de opinião. Não quanto à sua feiúra, nem tão pouco quanto àquela grosseria de sair por aí torcendo o beiço para as pessoas, inocentes ou não. Mas o motivo de promovê-la a feiosa perdoável era o seguinte: sem querer, me ofereceu muito mais do que havia saído para procurar! E por quê?

Bem, antes de mais nada demonstrou ter se apercebido de mim. Não tenho esse tipo de necessidade, normalmente faço o possível em espaços públicos para não ser percebido, mas o fato é que algumas centenas de pessoas também passaram no mesmo intervalo de tempo sem demonstrar nenhum julgamento, nem certo nem errado, bom ou ruim.

Ora, o meu objetivo ao sair não era o de fugir do julgamento alheio, mas sim do meu próprio senso crítico, que mais parece um cão farejador infatigável e incorruptível (capaz de desdenhar altivamente todos os biscoitinhos que lhe atiro), sempre fuçando eflúvios psíquicos e emocionais nas minhas reentrâncias almáticas. Outro ponto a favor da boa bruxinha: o julgamento alheio desse tipo (au passant) não permite qualquer negociação, como acontece por exemplo quando criamos subterfúgios e argumentos para falsear nosso próprio juízo, às vezes oferecendo até uma boa ação como magnânima propina!

Pensando bem, ela me deu algo muito mais importante. Pergunte comigo: não seria razoável imaginar o tipo constrangedor de reação que ela recebe quando homens jovens, bonitos ou interessantes têm a impressão de perceber alguma intenção no olhar dela? Claro, não apresentando nada de bonito nesse mundo onde todos somos tão condicionados à superfície das coisas e pessoas, qualquer reciprocidade seria mais provavelmente uma gozação. Então, nesse caso, a minha presença (não intencional) na prática ofereceu a ela a generosa e graciosa oportunidade de se vingar! Ou, dizendo isso de uma forma mais espiritualizada: de restaurar sua auto-estima e elevar o nível dos seus pensamentos. Quer saber? Me deu uma vontade de estar lá todos os dias.

Depois de algum tempo, certamente eu a levaria às portas do céu! Isso parece muito penoso? Nadica de nada, esforço nenhum. Veja bem, eu precisaria de muito mais tempo, abnegação, e força de vontade (dentre outras) para levá-la às portas do céu por meios, digamos, mundanos! Isso seria tarefa para um desses rapazes “bombados”, cheios de tatuagens, pierces, juventude e vigor, e sem 40 anos de alcatrão nas paredes arteriais! Nunca leram o Kamasutra, ou O Relartório Hite, ou coisa do tipo, mas pra que? Quando eu era jovem não os tinha lido ainda e não senti nenhuma falta disso.

Em resumo, de quebra ainda fiz a minha boa ação do dia e assim posso manter a esperança de chegar algum dia às portas dos céus, digo dos céus celestiais, lugar cuja direção desconheço completamente... Agora, penoso mesmo (e definitivamente brochante) seria encontrar a dita cuja lá! Sim, por ter chegado antes ela poderia sentir-se à vontade para fazer o meu julgamento e proferir solenemente que todas essas palavras que aqui escrevi não são mais do que uma mísera propina, só para liberar a minha mísera auto-estima do meu sentimento sovina de rejeição! Se assim acontecesse, eu não daria mais para a frente o passo consagrador, ao invés disso daria muitos de volta (sem saber em que direção ficaria o meu ateliê). Ainda juraria para todo o sempre aceitar o meu próprio senso crítico (assim como as demais pessoas comuns do meu convívio) e nunca mais sair do ateliê, interrompendo o meu processo produtivo, com o mesmo fim.

Copacabana, mar/2006

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