Multidão

Foto de fer.car

Quem sou...

Quem sou eu senão um ser a espera de um abrigo
Um aconchego, uma paz para este pobre coração
Quem sou eu senão a saudade do ontem, a ânsia do hoje
Um aperto no peito pela ausência do ser amado
Quem sou eu senão a calada da noite e a solidão que ela me traz
O olhar do desesperado no meio da multidão a sua procura
O choro inquieto da criança esperando sua atenção
O que sou senão um ser carente, de gestos confusos
De uma alma infinitamente boa, mas que sonha demais
Quem sou eu senão a fé que move moinhos
A brasa que aquece seu frio sentimento
O amor incansável, a vontade de querer ser sua
Quem sou eu senão aquela menina, hoje mulher
Menina de olhos castanhos atrás dos seus sinceros beijos
Dos cabelos negros a guiar-se pelo seus conselhos
Quem sou senão a moça mulher, a companheira
Aquela que ao fim da noite está ao seu lado
Que diz que vale a pena continuar nossa história
Quem sou eu senão o lado poético da vida
O rosto piedoso de um poeta triste
Ou um espinho cravado na alma
Quem sou eu senão seu retrato
Sua parte, sua metade, sempre incompleta
Por que não vens e me faz sua?
Quem sou eu senão parte do que tanto quis ser
E ainda sinto que muito se tem a conquistar
Quem sou eu senão o amor
O amor pulsando em cada segundo
Pulsando em meus dias
Quem sou senão só amor
Porque um dia lhe amei
E ei de lhe amar eternamente

Foto de Remisson Aniceto

Transição

É tão fria a cova e tão escuro o horto
onde depositam meu corpo doente!
_ Como a cova é fria se o corpo é morto?
A partir de agora só a alma sente...

Ah! Esta cama rude onde estou deitado
e este quarto escuro e tão bem fechado!
Tento levantar, mas estou tão cansado...
Que rumor é esse ali no quarto ao lado?

Há um jardim bem perto: sinto o odor das flores.
Quero levantar, mas estou tão cansado...
Estou tão cansado mas não sinto dores.
E o rumor aumenta ali no quarto ao lado.

_ Desçam o caixão! _ diz alguém lá fora.
Quem morreu enquanto estive dormindo?
Bem perto da porta ouço alguém que chora,
lamentando a sorte de quem vai partindo.

Quero levantar, faço força tamanha
mas tenho as mãos inertes e o corpo duro.
Agora o padre reza numa língua estranha,
enquanto fico preso neste quarto escuro.

Está caindo terra sobre o telhado.
Parece que o mundo está desabando...
Falta-me o ar neste quarto fechado
e lá fora há uma multidão chorando.

Sinto um tremor leve, um breve arrepio...
Já quase nada mais estou sentindo.
Por que não me tiram deste quarto frio?
Alguém morreu enquanto estive dormindo.

É tão fria a cova e tão escuro o horto
onde depositam meu corpo doente!
_ Como a cova é fria se o corpo é morto?
A partir de agora só a alma sente...

Foto de Jósley D Mattos

Atriz

Teus lábios, pétalas em rubi
delineo...
embebem a retina escarlate da câmara febril e histérica
encantam... pevertem torrida multidão.
O personagem despido de ti,
não seduz...
lúbrica,volúvel humana e só na imensidão de si...
és tantas,
e ainda te invento, num sonhar infante pertinaz,
incoercível,mítico...
és nua semente dos imaginários poéticos de deuses como orfeu,
e de humanos sem ornatos,
mortais como eu.

Foto de Edinei

Essencias de Amor

Essencias de Amor

Amor e sentimento vibrante
vive no coração dos amantes
os tornando ofegantes
nos momentos deslumbrantes
em que esse amor e constante

momentos em que se sente
estar fora do mundo
por estarmos lá no fundo
da fonte onde emana o amor

amor e dor latente
do amor se forma a semente
de um novo ser vivente
que pelo amor vai viver

esse ser nasce e descobre
que nesse mundo tão pobre
a essência de amar e viver

só o temos na pessoa amada
E após despedida alarmada
tua vida com ela se vai
a solidão entra e cai
dentro do seu coração

no mundo uma multidão
sentem essa cruel solidão
pela grande ingratidão
causada pelo amor

este amor que causa temor
amor que traz a beleza
faz o homem chamar de princesa
mulher sem tal patamar
faz areia beijar o mar
o mundo parar de girar

e para esse mundo de dor
sabemos que a causa da vida
deve ser mantida
na busca da essências perdida
do que chamamos de AMOR

Foto de Carmen Lúcia

Bailarina

Palco iluminado

Multidão calada

Grande expectativa

Pulsar de corações

Rostos sem faces

Vultos que se avolumam

Em cada espaço da platéia incógnita.

Cortinas sobem...sorrisos se abrem...

Olhares se fixam,penetram,inquerem...

Ei-la que surge sob etéreo foco de luz,

Figura minúscula,suave,frágil...

A reverência...aplausos febris.

A música ecoa... sétima de Chopin...

Os primeiros passos,trêmulos,leves,tímidos,

O rodopiar lento,compassado,ligeiro,rápido,

Um salto inusitado,

Um vôo inigualável...

Perfeito desafio à lei da gravidade...

A fragilidade que se quebra,

O minúsculo ser que se agiganta,

A suavidade que se supera

Nessa dança que expressa

A alma,o amor,a dor,a vida...

Lágrimas brotam...Quem as vê?

Sorriso triste...Quem o percebe?

Coração que sangra...Quem há de???

Alma aflita...voa bailarina,voa...

Num gesto sôfrego cai,coreografia extrema

Levando ao chão a tristeza,a dor,a emoção,

As lembranças daquele dia...

Luzes se confundem,vozes se ampliam...

Corpos se aproximam,a música termina...

Bravo!!! Bravo!!! Bravo !!!

Portas que se fecham,cerram-se cortinas,

Encerra-se o espetáculo,adeus à bailarina.

Foto de Lou Poulit

Amém

Eis o poeta em seu esplendor, sublimado por amor, doado à própria criatura. Eis o amor que falta ao mundo humano e que por isso envergonha: está na contra-mão do conceito, não tem abrigo na instituição familiar e nem se aprende na rua. Não é consumista.

Eis o amor do poeta, sobre um jornal na calçada. Aos olhares da multidão, que não lê na cartolina: "PROMOÇÃO!! - Funcionando Perfeitamente".

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SONETO DO AMÉM

No infinito o sol orbita
Arrastando o seu harém
O olho do universo imita
E o meu verso diz amém.

Porque o meu amor quer dar-se
Sai do centro, pertencido
Numa lírica catarse
Tece o gozo ao ser tecido.

Fálico, tangendo hemácias
No curral do abatedouro
Dálias, lises e acácias
Crestam como em Creta o touro.

Súbito golpe em alturas
O golfo, crido carmim
Faz-se alvo e sem perjuras:
- Rosas, escuras de mim!...

Jardim de minha amada, vem
Ao meu verso e diz... Amém.

Foto de Neguinhavi

Riscos

Rir é correr o risco de parecer tolo.
Chorar é correr o risco de parecer sentimental.
Estender a mão é correr o risco de se envolver
Expor seus sentimentos é correr o risco de mostrar seu verdadeiro eu.
Defender seus sonhos e ideais diante da multidão é correr o risco de perder as pessoas.
Amar é correr o risco de não ser correspondido.
Viver é correr o risco de morrer.
Confiar é correr o risco de se decepcionar.
Tentar é correr o risco de fracassar.
Mas devemos correr os riscos, porque o maios perigo é não arriscar nada.
Há pessoa que não correm nenhum risco, não faz nada, não tem nada e não são nada.
Elas poder até evitar sofrimentos e desilusões, mas não conseguem nada, não sentem nada, não mudam, não crescem, não amam, não vivem.
Acorrentadas por sua atitudes, elas viram escravas, privam-se de sua liberdade.
Somente as pessoa que correm risco é livre.

Foto de angela lugo

Sexta-feira da paixão

Naquela quinta-feira te deram um beijo
Não um beijo de amor... Mas de pura traição
Entregaram-te aos soldados do desamor
Aqueles que te prenderam... Açoitaram-te
Ao invés de sentir por ti compaixão
Machucaram-te até fazer a tua carne sangrar
O que tu passaste nesta noite somente a ti
Pertence e aqueles que lá se encontravam
E naquela sexta-feira...
Fizeram-te carregar uma cruz pela Via Sacra
Teu corpo já estava transfigurado pela dor
Caia... Levantava-se e lá caminhava...
O povo simplesmente olhava nada fazia
Com os olhos amedrontados apenas te via
Quando chegou ao teu destino já quase desfalecia
E ainda tinha a pior parte aquela que tu temias...
Vieram os soldados para que lá te pregassem
Naquela cruz que por ti lá esperava
E quando os cravos começaram a ser fincados
A dor quase já não existia já havia transpassado
Tamanho sofrimento já havia passado
Quando terminaram nem sequer se preocuparam
Com teus gritos abafados pela multidão pasmada
E assim tua cruz com teu corpo foram içados
Eles não se contentaram que ainda estavas acordado
Levantaram a lança e teu coração foi perfurado
Mesmo assim ainda os perdoaste...
Oh! Jesus como pôde ter sido tão injustiçado
Esqueceram que ali jazia o corpo do Pai amado

Foto de Lou Poulit

São Jorge e o Dragão

Sentados em bancos tipo meia-bunda, Hermes e Cuia haviam acabado de chegar ao balcão da birosca. Cuia era bebedor dos bons. Mulato quase negro, de fala mansa e bigodinho de chinês. Bom malandro, sobrevivente a tudo. De terno e gravata daria um excelente relações públicas. Só bebia cachaça e tinha preferência: Ô Portuga, dá meu marimbondo aí! Já seu amigo Hermes era letrado. O Vela, como era chamado na adolescência, era magérrimo, branco como um defunto, parecia meio lento em tudo. Havia se afastado dali por alguns anos e nesse tempo fez faculdade, arrumou emprego, casou, separou, casou de novo, separou de novo, casou mais uma vez... Continuava mal bebedor, pedindo a mesma marca de uísque: Ah... Bota qualquer um aí, Portuga.

O Cuia só observando. Em sua cabeça um silêncio era bom conselheiro: gozado, o tempo passa e as pessoas vão se misturando. Aquela que conhecemos desde dos tempos das pipas e peladas, agregam-se com outras que não conhecemos ainda, mas parecem tão importantes quanto as antigas, senão mais. E todas se dão muito bem umas com as outras, dentro do mesmo corpo.

Era manhã de domingo, dia de decisão no campeonato local de futebol. A birosca na encosta da favela já parecia lotada. Se a polícia chegasse de repente, com certeza ganharia o dia, porque já era quase impossível aos de dentro vigiar os que viessem de fora. O tumulto pacífico da birosca era como o Hermes. Com o passar dos anos alguns não arredam pé. Outros, desconhecidos, chegam, depois voltam e vão ficando. E outros tantos somem, por algum tempo ou definitivamente. Mas a birosca ainda era a birosca do Portuga e as alterações individuais não modificavam muito a mistura. Fora a fauna birosqueira, tudo mais parecia continuar nos mesmos lugares: as garrafas de bebidas mais caras, os salames e enlatados cobertos de poeira, no nicho de táboa a lâmpada devia estar iluminando o São Jorge que, a despeito da ausência de uma lança, não fora ainda comido pelo dragão, apesar de tantos anos de luta. O próprio Portuga sempre se dizia convencido de o aquele dragão enchia a cara de madrugada, depois que fechava as portas, e que só por isso não conseguira ainda comer o santinho.

O Hermes agora tinha uma identidade virtual, a julgar pelo palavriado que estava usando e que provocava a indignação dissimulada dos bebuns mais próximos: sabe, Cuia, o Portuga devia deletar aquele mictório compactado... Como é que é? – Espantou-se o amigo. É verdade, mermão... Aquilo é um banco de vírus! O Portuga é meio lento mesmo. Ele quer que esses caras acertem uma latinha daquelas. Já viu bêbado bom de mira?... Não – Cuia achou melhor não interromper – Nunca vi não... Então, Cuia, pra começar você tem que se espremer pra passar na portinhola. Só nisso já vai um risco. Depois tem que segurar a bebida, o cigarro, a portinhola... A portinhola?... Claro, mermão, vai que alguém deixa pra última hora e entra lotado. É uma senhora “portada”!... Riram-se os dois e o Cuia completou: É o que chamo de um arranca-rabo!... E o cara que não queria encostar em nada... Vai chegar em casa todo molhado – Hermes interrompeu - e a dona encrenca vai inserir o cara na casinha do quintal, vai passar a noite junto com o Totó!

Ô Hermes, por falar nisso, cadê a Laurinha?... Laura? Ô Cuia, que estória é essa de “por falar nisso”? Eu nunca dormi com o Totó não. Você precisa ler as atualizações do meu perfil... Ler as atualizações... – Repetiu o outro perplexo. E faz isso rapidinho, porque eu tô saindo, Cuia... Você tá saindo... Já vai embora?... Que vou embora, cara? Quis dizer que tô desistindo das mulheres dos outros... – e aproximou-se do ouvido do amigo – Estou apostando todas as fichas na mentirinha... Que mentirinha, Hermes?... Ô rapaz, aquela gata gorducha, que trabalha na “lan house”, vai dizer que nunca viu?... Sei, da loja de internet ali no fim da ladeira. Mas não era a Laurinha a razão da sua vida?... Laurinha nada... Se arrumou com o dono da firma, agora desfila de gerente... Ô meu irmão... – O Cuia mostrou-se penalizado – Que azar... Azar? Você não sabe da missa a metade. Depois dela já tive a Mariazinha, a Teresinha e a Socorrinho... É mesmo Hermes?... Tô te falando, Cuia, mulher dos outros agora pra mim é homem!... Nenhuma delas deu certo, né?... Não podia dar: A Mariazinha só queria saber de ganhar coisas caras... Ih, mermão, isso ia te deixar na miséria... Deixou mesmo. A Teresinha no início era uma santinha, o marido tinha sido atropelado, vivia numa cama, e ela passava o dia fazendo sexo pelo computador... Mas isso não resolve, Hermes... Não, a gente saía toda semana... Então, qual foi o problema?... Ela acabou viciada, Cuia. Perdeu a fibra... Como assim, não era a sua mulher?... Não!! Era mulher do computador!!... Ô Portuga, dá mais um aqui pro Hermes!

Cuia precisou pedir mais bebida para dissimular. Tinha muita gente em volta olhando, querendo saber quem era aquela tal mulher do computador. Sem se dar conta e parecendo soterrado de alguma culpa, Hermes foi se explicando: Mas a Laura, ô Cuia, ela não foi a única culpada, sabe? Porque quando comecei a desconfiar dei de ficar deprimido. Depois, sabe... Eu não dava mais cem por cento, depois nem oitenta, e foi diminuindo, diminuindo a transmissão dos dados... Entende?... Os dados? Ah, sim, acho que entendo. Mas e a outra?

Quem, Cuia? Já te falei, depois foi a Mariazinha... Me deixou numa miséria de dar gosto. Ô acesso caro aquele, sô... Aí eu não podia mais fazer outras coisas das quais gostava e sentia falta, não tinha grana pra nada. Estourei o cartão de crédito. Ninguém olhava mais pra minha cara, mermão... Tentando entender melhor, o Cuia perguntos pelos dados... Ah, a transmissão voltou a cair, né? Chegou a menos de um quilobite por segundo! Ô desespero o meu... Por que você não fez uns programas, pra variar?... Programa, não fiz nenhum, Cuia. Mas baixei tudo que pude baixar. Todo dia era dia de “down”... E nada de “up”... Nem um cachorrinho? – O Cuia perguntou brincando, para tentar levantar o astral do amigo... Nem um, era só cavalo-de-tróia!... Essa eu não conheço ainda, mermão... Nem queira, Cuia. Depois você tem que fazer uma faixina geral. É muito chato mesmo. E se perdesse o HD nunca mais vinha aqui beber com você. Em falar nisso, ô Portuga! Cadê o meu uisquinho?... Já vos dei, ó pá!... Tão dá outro!

Da posição em que estava, Cuia percebia o interesse crescente dos bebuns em volta na estória do Hermes, mas achou melhor não interromper. O amigo devia estar precisando desabafar. Depois, eles não poderiam mesmo entender aquele dialeto de informática. Também não entendia bem. E o Vela continuava falando: Agora a Teresinha, Cuia, nas primeiras vezes aquilo chegava sem jeito, olhando pro chão... Mas dali a pouco a santinha virava o demônio com rabo e tudo. Caraca, mermão! – O Cuia completou – Você só no piloto-automático... É isso, Cuia, o navegador era dela. Ela que escolhia a página... E num tinha anúncio não!...

Ao ouvir tais palavras, um dos bebuns já bastante calibrado, amigo dos tempos das pipas, chegou-se ao ouvido do Cuia e perguntou: Ele tava vendo televisão ou o que?... O Cuia dissimulou: Ainda não sei, mermãozinho. Fica na tua aí, na moral. Deixa o cara acabar de falar, valeu? O bebum voltou meio inconformado pro canto dele e o Hermes falando: Mas foi assim só nas primeiras vezes. Pôxa, Cuia, eu já tava apaixonado por ela quando, numa tarde, começou a balbuciar umas arrôbas diferentes... Que arrobas, Hermes?... Endereços, Cuia... Ah, dos outros amantes dela?... Que outros amantes? Amante era eu, o resto era virtual! - Hermes indignou-se, deu um murro na táboa do balcão e pediu mais uísque. Do seu canto, sentindo-se desprezado, o bebum disse com a voz lenta: Taí... Que machão que ele é... E recebeu um olhar enviezado do Cuia.

O Vela nem se dava conta do que acontecia à sua volta, ia desfiando o seu rosário enquanto a audiência dos bebuns aumentava: Eu não queria bloquear nem excluir a Teresinha, mas a cada nova tentativa ficava pior... Aí conheci a Socorrinho, que também era Maria, Maria do Socorro... E qual era o problema dela, mermão?... Não era ela não, Cuia. O problema era o marido dela... Ué, por que?... Porque o cara tinha mais de dois metros de altura, era muito forte e ruim que só o cão... E ele sabia que era chifrudo?... Sabia, mas era apaixonado pela Socorrinho e já tinha mandado dois pra lixeira, cara!... Ih, canoa furada, Hermes... Então uma tarde ela me chamou na casa dela... E você foi, maluco?!... Fui, ela me disse que estava precisando de um desencanador... Ocê é doido... É foi doidice mesmo. Quando eu pensei que ia carregar o arquivo, a trezentos kilobites por segundo... O cara te deu o flagrante... Não, tocaram a campanhinha... Ô mermão, ninguém toca a campaínha pra entrar na própria casa... Pois é, mas já derrubou a velocidade, né? Era o filho da vizinha. Ela despachou o moleque a agente voltou pro matadouro...

O bebum desprezado era um bebum respeitado. Toda hora fazia uma careta, ou um gesto, e os demais bebuns, formando já uma meia-lua às costas do Hermes, trocavam impressões. Percebendo tudo, o Cuia tentou levantar a moral do amigo: Aí você fez o couro comer... O bebum balançou o dedo indicador e fez beiço, querendo dizer que não acreditava. O Hermes respondeu: Mais ou menos, Cuia... Os bebuns metidos a jurados dissimularam uma estrondosa risada, quando o bebum desprezado saiu da birosca fazendo uma porção de gestos. Mas não demorou muito, alguns minutos depois lá estava ele novamente, pedindo licença para passar e voltar ao seu canto. Que mais ou menos é esse? – Perguntou o Cuia. Eu disse mais ou menos porque quando o programa estava quase carregado, ela me sussurrou que ouvira um barulho na cozinha. De repente o cara entrou no banheiro, já tirando a roupa, e quando me viu perguntou o que eu estava fazendo ali... E você, mermão, por que não pulou a janela?... Que janela, Cuia? Primeiro porque não tinha uma por onde eu pudesse passar. Segundo porque o banheiro era tão pequeno e o cara tão grande, que eu tinha a impressão de que éramos duas sardinhas numa lata. Ou melhor, uma sardinha e um tubarão! Que coisa, rapaz. Ele entrou tirando a roupa e eu tentando vestir a minha!... E aí?... Ai eu disse que já sabia qual era o problema... Como assim, Hermes?... É, mermão. Vou explicar: Quando corri pro banheiro, logo vesti a cueca. Aí ouvi o cara falando que havia chegado o caça-vírus. Então, em vez de por a roupa, eu desenrosquei o sifão da pia e abri a torneira. Só não deu tempo de abotoar as calças... E o cara caiu nessa? Mas que otário!... Bem isso eu não sei. Porque eu disse a ele que no dia seguinte voltava pra tirar o entupimento. Ele me pediu que saísse do banheiro porque queria olhar o serviço. Enquanto ele olhava eu fui saindo. Quando pus o pé na rua, mermão, desembestei que nem a mula-sem-cabeça! E ainda passei uma semana correndo. Vendo o cara atrás de tudo que era poste.

A turma de bebuns já não dissimulava mais as risadas e os julgamentos. E já não era composta apenas de bebuns, nem somente de homens. Haviam chegado mais torcedores e algumas prostitutas mas, devido a bebida já em conta alta e ao peso das lembranças, o Vela não se importava. Expunha-se ao ridículo, despertando a piedade de alguns. Cuia não sabia mais o que fazer. Pensava em como levar o amigo para casa, enquanto ele ainda pudesse andar com as próprias pernas. Mas de repente o Hermes se empolgava e recomeçava a falar, sem tramelas na lingua já melosa. Estava claro que ele não se submeteria a nenhum conselho: E tudo por causa daquela piranha, Cuia! A gente era feliz. Eu percebi muito antes e falei com ela. Disse que o Afrânio ia querer lotar o disco, secretária novinha, com tudo no lugar, se sentindo importante... É, o cara foi esperto... Ela é que foi uma vagabunda! Eu avisei antes, ela aceitou porque se entusiasmou com as gentilezas do Dr. Afrânio – disse o Hermes com desdém... Mas clama, mermão, isso agora já é passado. Esquece essa estória e vai em frente. Você não quer pegar agora a mentirinha? Então pega e esculacha, mermão. Vai te fazer esquecer as outras. Inclusive a Laurinha... Ah, a Laura não, Cuia. Eu não consigo esquecer o que ela me fez. Nunca, jamais vou perdoar aquela mulher. Se encontrar com ela na rua eu arrebento a piranha de porrada.

Sem sair do seu canto, o bebum desprezado balançava o dedo e fazia beiço. Os demais, já em franco debate, se dividiam. As prostitutas, em grupo, se defendiam. Alguns torcedores defendiam as prostitutas, para que tivessem o que fazer depois do jogo, afundar a mágoa em caso de derrota. O Portuga não tomava partido, bastava-lhe vender bebidas para todos. No fundo todos se divertiam, aproveitavam o fim-de-semana. Até o dragão se divertia com aquele São Jorge sem lança! Menos o Vela. Estava realmente consternado, não parava de imaginar formas alternativas de trucidar a Laura. E usava as opiniões dos bebuns para reorientar as suas tramas, curtindo a dramatização da sua desgraça, como se lhe causasse prazer. Numa dessas, ao dirigir-se ao grupo de prostitutas para ver sua reação, percebeu que uma delas saia de trás do grupo e atravessava em sua direção. Ele não queria falar com ela, era apenas uma puta, como dizia ser também a Laura. Tudo farinha do mesmo saco! – Disse em definitivo.

Quando o Hermes escutou aquela voz de mulher lhe dizendo um curtíssimo “Oi” pelas costas, imaginou que o mundo havia parado de repente. Um silêncio palpável preencheu o ambiente. O Vela tentava decidir o que fazer, sob o peso de muitos olhares. Quando se voltou para trás, viu que havia uma mulher muito bonita no centro de um pequeno espaço, obviamente aberto para ela. Apesar do congelamento generalizado, apenas o bebum desprezado balançava a cabeça, mas agora positivamente. O Hermes não conseguia articular uma só palavra. Dentro do seu íntimo encharcado de uísque “qualquer um”, tudo era escuridão, uma multidão de vultos ia e vinha, sem que ele pudesse organizar o pensamento. Não teve coragem de dizê-lo, mas não restava nenhuma dúvida: só podia ser a Laura. Queria olhar dentro dos seus olhos, pois conhecia-lhe o olhar, mas a bebida já não o permitia. E quando a mulher lhe estendeu docemente a mão, com um sorriso calmo e soberano no rosto, o Vela não conseguiu fazer resistência. E deixou-se levar lentamente para fora, pela mão, como uma criança ingênua. Atravessando o silêncio estupefato e o julgamento sem veredicto de cada um dos presentes, sumiram os dois entre os torcedores que, na rua, preparavam-se empolgados para tomar o caminho do estádio. Como se houvessem ali dois mundos paralelos, o casal e os torcedores não se confundiam, mal se notavam. Era de se pensar que não estivessem no mesmo tempo e no mesmo lugar. Uma mão imensa e irresistível parecia abrir aquele mar de gente, enquanto o casal sereno e mudo escapava dos julgamentos, sem que se molhassem sequer no suor dos torcedores.

Na birosca, foi o bebum desprezado que quebrou a perplexidade. Deu um tapa na lateral do balcão, fazendo um estrondo que deixou o Portuga furioso. Ô Portuga! Dá outro marimbondo aqui pro meu amigo Cuia, que ele está pagando o meu também – e virando-se para o mulato, que se mantinha pensativo, sussurrou - como nos bons tempos, hem Cuia? Uma a uma as pessoas foram se reacomodando pela birosca. O bebum sentou-se no banco, que o Hermes deixara morninho, disse com ar sábio: Ah, o amor. Coisa mais linda é o amor... Encafifado, o Cuia não respondeu mas quis saber: Sabe, você até pode me achar com cara de panaca, mas eu não tenho certeza de que aquela mulher era a Laurinha. Se bem que era muito parecida, não vejo há anos, mas acho que não era não... O bebum virou a sua cachaça toda de uma vez e depois ficou olhando para o chão, reflexivo, com um sorriso torpe nos lábios. Depois de um tempo, finalmente falou claramente: Não era ela mesmo, Cuia... Mas então, quem era ela?... Depois de fazer uma careta, como se rebuscasse o passado, explicou: Você não se lembra da Fátima? Não, né. A menina que vendia bala na estação do trem... Não, não me lembro mesmo... Eu conheci as duas desde pequenas, desde quando eu era um homem respeitado. A Fátima é mais nova, mas sempre foi parecida com a Laura. Depois meteu-se com aquele bandido, famoso por cortar as orelhas dos seus desafetos... O Pinga-Fogo... Isso, ele mesmo. Ele sustentava a ela e a outras molecas. A Fátima engravidou para se sentir mais segura, mas o cara apareceu cheio de buracos pouco antes do bebê nascer. Ela então andou na mão de um e outro bandido, pra manter o pirralho. Depois desapareceu de repente. Passou uns anos fazendo programas com gente endinheirada, gerentes de banco, diretores de empresa. Tem três meses que ela reapareceu, está morando no bairro aí de trás... Mas por que ela tomou aquela iniciativa?... Porque, como lhe disse, coisa mais linda é o amor...

O Cuia estava inconformado, não conseguia entender direito. Não vai me dizer que ela está apaixonada pelo Hermes?... Que apaixonada, Cuia. Ela nem conhecia ele direito... E como ela veio parar aqui na birosca?... Eu chamei, ora. Ela é puta, não é adivinha. Mas eu conheço ela muito bem. Você sabe que conheço as putas daqui. Não posso mais pagar pelos serviços delas, mas conheço bem várias delas e sou amigo delas... Que coisa de doido, quem vai pagar? Quando o Vela entender tudo não vai tirar um tostão do bolso... Nada de doido não, Cuia. Ela não veio receber dinheiro não... Como não?... O bebum parou, se ajeitou no banco e continuou: Cuia, meu velho Cuia... Eu já vivi um pouco mais que você. E lhe digo com toda a convicção: As mulheres que vivem de programa não são todas iguais. Mas são seres humanos todas elas, têm sentimento. Eu não pedi, apenas perguntei se ela queria fazer isso. Ela confiou em mim e topou fazer... Mas o Hermes não ama essa mulher... Já deve estar amando, Cuia... Não é a Laurinha... Que diferença faz, Cuia? Ele precisava amar, se regenerar, tirar o paredão de dentro dele. Você acha que o amor dele, que ele não pode exercer e não serve pra nada, é mais amor que o da Fátima, dado de graça, pela necessidade dele e por amizade a mim? E ademais ela não tem nada a perder, tem a dar. Qual o pecado nesse caso? Mas o Vela podia ter perdido a vida, lá no banheiro do caça-vírus. E noutras vezes, porque ficar pegando as mulheres dos outros...

O Cuia ainda não aceitava plenamente a conversa do amigo, porém reconhecia certa razão. E será que o Vela vai segurar a peteca? Do jeito que saiu daqui, não sei não... Ora, Cuia, ela é uma mulher sofrida, experiente, com certeza vai dar o jeito dela... Mas ele não vai se casar com ela, né?... Casar? Acho que ela não ta pensando nisso, não. Prostitutas nunca pensam em casamento numa primeira ocasião. Não é esse o trato. Se você sair com uma delas e falar em casamento, nunca mais ela sai contigo, pra não apanhar do cafetão... Mas vai que a Fátima pensa... E daí? Eu não sou cafetão, não ganho dinheiro com ela... O Cuia pediu a conta ao Portuga, pagou a cachaça e pendurou o uísque, reclamando do preço. Depois, com ar de satisfeito, disse ao amigo: bom, tomara que pelo menos você esteja certo e ela saiba acender velas. Senão, quando ele voltar aqui, vai dizer que de repente bateu um vento... Que nada, Cuia, você num entende nada de velas. Ele vai dizer que quando o programa estava carregado, caiu a conexão!

Foto de myrian

Carta ao meu ser...

Escrevo esta carta a mim mesma, mas quem quiser ler tudo bem.
É um desabafo.
Desabafo cego, mudo, surdo, pois ninguém me dá resposta.
Gostaria de gritar.
Mas quem vai me ouvir?
Ninguém.
Se eu chorar serão lágrimas de solidão.
Estou só.
Parada na multidão, sozinha na multidão, olhando a multidão.
Cada um passa e não se vêem não se ajudam, se alguém cair, tem que levantar sozinho, pois senão fica no chão.
O mundo é pobre.
Pobre de homens pobres.
As pessoas são vazias, tão vazias que não se encontram, nem no seu próprio eu.
O tempo passa e cada vez mais pessoas sofrem perguntando-se onde estará a razão de viver.
Buscam algo para permanecer na memória, mas não encontram.
Procuram como eu também procuro uma mão que ajude uma mão amiga que acalente que afague, e não encontram.
E o tempo passa... Passa...
Eu estou só, procurando alguém, será que algum dia vai encontrar?
Não, não acredito que encontrarei.
Pois cada um fecha-se mais em si mesmo, cada vez mais procuram o seu eu e não encontram, então como vão nos achar?Cada um se preocupa em se achar, sem sequer perguntar a alguém: vamos achar juntos? E ajudar os outros a se acharem?
Mas não são assim, eles não se preocupam em saber se você precisa se levantar.
Se achássemos uma mão amiga, generosa, protetora, solidária, você veria alguém caído no chão?
Não.
Mas onde esta essa mão?
Perdida no mundo podre...
No universo vazio, de gente vazia, como eu, como você.

Myrian Benatti

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