Noite

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Amor por Obras de Arte

Sabe de uma coisa que me surpreende de vez em quando, a cada vez de uma forma diferente? O poder que têm os objetos de arte de fazer com que as pessoas desenvolvam uma relação psíquica absolutamente particular com elas. Já ouviu falar naquele sujeito que vai morar em um lugar mais valorizado, pinta a casa nova, troca todos os móveis, “...a velha calça desbotada ou coisa assim” (*), os sapatos, o carrão, o cachorro, troca até de mulher!... Aí quando o amigo (que não foi trocado) faz uma primeira visita... Não há como fingir que não viu, lá está aquela escultura, pintura, artesanato, ou seja lá o que for. Sem dúvida é a mesma! Se você nunca viu, prepare-se para conhecer um dia alguém assim.

Tenho uma cliente adorável. Comprou uma (apenas uma e nunca quis outra) pintura minha da série Bailarinos Elementais. Pois bem, segundo a própria, de manhã ela não vai trabalhar sem se despedir. A Bailarina fica o dia inteirinho quetinha na parede da sala, na mesma posição!, de frente para a porta, esperando que sua dona volte e diga boa noite, ou bom dia... Falando sério, quando ela me contou (foi assim mesmo, ela não deixou que ninguém contasse antes) pensei que fosse dizer que a Bailarina saía bailando pela sala... ou pior, que abrisse a porta pra ela!

Para que ninguém duvide, conto outra. Uma outra cliente, igualmente adorável, encomendou um Anjo Peregrino fazendo uma relação de especificações. Queria que o Anjo ficasse na cabeceira da cama, mas não o queria nu como os da série. Arrumei um jeito de cobrir as partes pudentas do jovem Senhor com algumas penas da asa. No dia marcado, ela veio buscar a pintura no final do expediente e saiu pela cidade toda serelepe. Até chegar em casa, com certeza deu muitas “pinturadas” em pessoas que queriam apenas chegar em casa íntegras. Pois bem, tomou sumiço... Cerca de um ano depois, eu estava expondo na feira turística de Copacabana e senti alguém me cobrir os olhos com as palmas das mãos, pelas costas para fazer surpresa: “Se você adivinhar, só pode ser um anjo”... Ora, passados mais de doze meses, até para um demônio haveria de ser difícil adivinhar que ela estava dando uma pista do anjo dela e que, portanto, tratava-se dela!... Conversa-vai-conversa-vem, perguntei pelo Anjo. Devo assumir ter parte de culpa, porque nesse momento eu próprio tratei o personagem como uma pessoa. E ela prontamente respondeu que estava lá no mesmo lugar. Querendo fazer uma piadinha, perguntei se ele nunca saía, nem para tomar um cafezinho ou, pelo menos, se espreguiçar. Então minha cliente, hoje uma boa amiga, me disse: “Sair ele não sai não... Mas às vezes eu tiro”. Naturalmente, pedi que explicasse. E ela me contou, com alguma timidez, que quando o namorado dela chegava, ela dissimuladamente ia no quarto (sem acender a luz), descia o Anjo do prego e o empurrava para baixo da cama! Não consegui me segurar. Não achei que pudesse ser uma indiscrição minha e quis entender a razão. Resposta envergonhada: “Ah... O seu Anjo tem um olhar muito severo”... E depois veio outra pior. A última risada dessa noite aconteceu quando ela me confidenciou que certa manhã, sentiu “pena” do Anjo e o reconduziu ao seu lugar, sem se importar com o fato de que o namorado ainda estava na cama. O resultado foi uma pergunta dele indignada, mas para mim surpreendente e reveladora: “Quem é esse cara aí?!”...

Foto de Lou Poulit

Hoje Celebro uma Estrela

Hoje celebro uma estrela.

Porque, como de todas as estrelas,

Devemos desistir de tê-las

E como o barco, que apetece Pessôa,

De tão boa apenas pertencê-las...

Pelos cantos, sob os estrelados mantos,

Em cujas noturnas lembranças vagueio.

Hoje celebro muitas coisas.

Até aquelas crianças cheias de dentes,

Tão ricas, tão felizes, tão magrelas,

Que hoje celebro a lembrança delas,

Das velas que seus sorrisos dispensavam

(Quando até a luz faltava);

Porque tímidas estrelas guardam

O sonho radiante das manhãs

E aqueles sorrisos de dentes

Guardavam e protegiam pra gente

As nossas esperanças terçãs.

Sobretudo, do meu amor não apanhe,

Por celebrar com tão simples champanhe

O mais nobre e verdadeiro sentimento:

O querer-tão-bem mais insuspeito,

Que assim como um fermento do peito

Enobrece o tempo e a distância...

É uma prece, uma constância...

Quanto mais velho: melhor.

Hoje celebro uma estrela

Que não pode pertencer à noite

Nem ao dia, nem a ninguém;

Pois que seja, pois que sobreviveu!

Nos protegeu, pois que nos beija!

Nos fez crescer além da idade...

E tão injustamente amesquinhamos:

É só amizade.

Lou Poulit, jul/2006

(Aniversário da bailarina e amiga antiga Agda França, prestes a embarcar para um trabalho no Japão).

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Antes Sujo o Verso Seja, Que o Homem em Quem Viceja

Meu Deus, lá se vai mais um ano! Mais um cano e eis que vejo: Porque ainda sou tão puro! Uma luz no fim do escuro.

Começar tudo outra vez... Tudo que se fez (sem trocadilho), do porão ao tombadilho. Tudo, tanto que se quis, e tudo mais que não se diz. Como arrepio que fugiu pela mente; pois somos gente, de carne e osso, e mesmo do fundo do poço vejo: Porque ainda sou tão puro! Uma luz no fim do escuro.

Se lá se vão, os anos não importam. Entortam-se os anos como pepinos: de meninos. E sem olhar pra trás!

Mas não confunda a barafunda que aqui faço (e não afunda) com o corcunda da igreja, que mesmo sem abraço beija o pé, que de pronto abunda! Deixem-me ser errado porque queremos, ao menos uma vez (e não porque queiram). Fui tão sério, tanto, tanto, quis tanto fazer tudo certo... Que mágica! Ao se virar a página, nenhuma coisa pode ser tão trágica.

Tome o poeta por assexuado, mas o homem é na verdade macho (e precisa usar desodorante). É facinho, mas é macho de fato. Com focinho e tudo, macho do mato. Da fruta e do flagra do flato!...

Basta, nunca fiz tanta bosta posta num espaço tão curto. Mas só assim me ameniza a lombeira de um ano inteiro, à beira de fazer uma última e salutar besteira. Antes sujo o verso seja, do que o homem em quem viceja! Em Notre-Dame, na Lapa antiga, nem a Cornélia boa de briga me escapa e nem à tapa me convence, que de tudo nada se aproveita. Se já me peita hoje com o sorriso (embora ela pense que economizo) não sabe na vida o quanto eu a desejo! E que por isso... Eis que vejo: Porque ainda sou tão puro! Uma luz no fim do escuro.

Nessa vida não há dois sentidos... Há três, quatro, cem! E todos tidos como sem-vergonhas, sem isso e sem aquilo. Mas não é um “self-service”. O poeta serve-se de palavras, crava as unhas no meu plexo e no sexo dos meus ideais (ais!), mas eu quero é mais, muito mais. O mais difícil: O Himalaia, a panacéia divinéia, até mesmo a Paulicéia, o Saara, o Everest, a Cachemira... Pois está na cara que se veste e depois se tira a fantasia! Para que só reste a luz do dia... Que seja a luz feliz dos olhos, de preferência dos olhos da vida!

Nada contra as luzes da virada. Mas seja a luz eternizada sobre o que se construiu pedra por pedra (ou seria pedrada por pedrada?), dia e noite, lembrança a lembrança... Porque nossa imensa andança, qualquer que fosse a distância, já tinha exato um endereço. Quero ser grato. Por ter pago o preço, por ter sido tanto tempo lapidado, para não perder agora o brilho do olhar.

Pois que venha o ano-novo logo! Assim volto a ser sério e rogo: não se apague em mim o sorriso da amada. Então, ainda que a minha estrela se apague, que o sol em zigue-zague, perverso caia no próprio escuro imerso, minha alma que ainda viceja gritará ao universo: Veja! Porque ainda somos mais puros juntos, uma luz no junto dos escuros!

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Trovão e o Sabiá Sereno

Aos Leitores e Amigos.

Antes de qualquer palavra, quero dizer que será um prazer partilhar com vocês os meus textos e que sou grato ao Poemas de Amor pela confiança que em mim depositaram.

Há alguns anos venho escrevendo contos. Mas vinha fazendo isso como quem armazena sementes, ou seja, sem permitir que elas brotassem antes da hora. Quando esse Site me ofereceu o blog, quis crer que não mais se justificava guardá-los só para mim. Até porque, talvez a partir de agora eu possa ter percepção de como eles tocarão outras subjetividades, diferentes da minha. Alguns serão postados tal como foram criados, enquanto que outros serão adaptados para que se tornem mais congruentes com os objetivos do Site, que não eram prioritários para a formação original da identidade do escritor.

Espero que gostem já desse primeiro conto, pelo menos tanto quanto eu. Mas como não vejo no conjunto deles, ainda, uma maturidade completa, antecipo que conhecer o que despertam nos leitores será motivo de gratidão da minha parte.

Abraços a todos e, desde já, muito obrigado pela gentil acolhida.

LOU POULIT
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Sentada sob alpendre da mansão colonial, sua fortaleza de toda a vida, Sinhá havia se perdido em seus pensamentos. O dia havia se despedido há pouco, na apoteose fugaz de um céu prestante de cores e texturas, que de tudo o que pode tentou fazer para merecer a atenção da moça. Nem a sinfonia da passarada fez efeito. Tudo em vão, restaram as estrelas que nem sequer se aventuravam. A passarada se calou para dar a vez aos grilos, sapos e outros barulhentos notívagos. Sinhá revirava mecanicamente os fartos rendados da saia à sua volta, pois de fato não estava ali.

Então, passos arrastados vindos de dentro precipitaram-na do etéreo, de volta ao corpinho magoado pela posição pouco cômoda. De tão surpresa e assustada, não teve coragem de se virar. E esperou apenas, como seu sangue esperava dentro das veias. Aos poucos uma luz tênue, mas capaz de expulsar soberanamente a escuridão, se aproximou. Depois mais um pouco. A moça temeu que se aproximasse ainda mais e explodiu em gritos nervosos: Saia já daqui! O que quer de mim, demônio? Eu não lhe chamei aqui!

A pouca distância um caboclo mulato de aspecto impressionante, pele muito morena e os olhos claríssimos de uma onça enterrados no rosto embrutecido, como pequenas gemas raras no emboço úmido da terra adubada pelos séculos. O velho Sereno segurava a candeia, tentando compreender, tão próxima, a moça que à distância vira crescer, como flor única naquelas glebas. Durante parcos segundos, Sinhá não conseguiu balbuciar uma palavra. Tentava decifrar como aquela figura estranha havia invadido seu silêncio, que significado poderia ter dentro dele e se seria perigoso para as coisas ricas que guardava em segredo. Porém, achando que o silêncio era ainda mais insuportável, a moça voltou à carga: Quem lhe deu o direito de estar aqui? Ele tentou explicar: Vim só alumiá o negrume da noite pra vosmicê, Sinhazinha... Carecia de se assustá não... Não tenho medo de nada, ela empinou a própria fragilidade. Como poderia temer um empregado dentro da casa do senhor meu pai? Ademais, estava aqui com meus pensamentos...

O homem olhava com segurança os olhos escorridos de lágrimas da moça, cheios de brilhos amarelados pela chama da candeia. Sentia pena dela, mas sabia pelas décadas de convívio que não se devia manifestar piedade para com os senhores. Sereno sabe que está triste, Sinhá. Ma num pode fazê nada não, disse ele abaixando os olhos. Mas como pode saber disso? Não lhe dou esse direito. De onde você saiu?... Ainda com os olhos baixos, ele respondeu: Sempre estive aqui, Sinhazinha. Vim pra essas terras do senhor seu pai na barriga da minha mãe, que se foi embora amarrada naquele pé-de-jurema-branca, bem ali na direção onde a lua vai nascer já. Eu era desse tamaninho, cabia no cesto onde o alazão comia o seu mio. Naquele tempo o capataz era um homenzinho muito do ruim... Ela só queria alimentar a sua cria...

A moça se refez da letargia quando o ouviu falar no alazão, tornando a gritar: Não me fale do meu alazão. Eu amava o Trovão como se fosse uma pessoa! Ninguém montava nele além de mim! E acabaram de trazê-lo num arrasto de pau-de-mangue... Ele estava morto! E eu vou matar quem fez isso com ele... E a chorar convulsivamente ela recostou-se no portal, até sentar-se de novo no degrau do alpendre. Sereno continuou calado, imóvel, com os olhos cravados nas lages do chão. Como se sua alma cansada procurasse uma brecha para um imenso arrependimento.

Tentando descobrir em seu próprio silêncio o que deveria fazer naquela situação triste e constrangedora, o velho caboclo foi lentamente até a arandela pendurar a candeia. Não sabia o que fazer a mais. Durante quase vinte anos quisera ajudá-la em muitas situações de perigo, mas sempre chegava alguém antes. Sereno trabalhara sempre na plantação, às vezes tratando dos cavalos doentes e outras como mateiro. Amava a menina, antecipava os riscos que ela corria, mas haviam outros mais próximos dela. E agora o mesmo sentimento de proteção lhe parecia palpável de tão denso. E ironicamente, embora estivessem ali apenas os dois, simplesmente não sabia o que fazer.

Passados alguns poucos e imensos minutos, a moça quebrou o silêncio, mais calma, porém sem perder a altivez da voz: Como se chama? Sereno, Sinhazinha - disse ele. E porque está aqui, nunca lhe vi dentro de casa?... O velho empurrou a aba do chapéu para trás e coçou a calva rala e branca, como sempre fazia quando se sentia inseguro. Demorou um pouquinho mas respondeu: Eu vim de pés lá de trás da serra dos pastos... O senhor seu pai mandou que me alimentasse e ficasse por aqui até amanhecer. Ela insistiu: Mas por que veio de pés? Ah, Sinhazinha, parei no meio da mata para ouvir o sabiá-da-mata, tava cantando bem em cima de mim. Desde menino adoro os sabiás, num gaio da mangueira, por cima da minha palhoça tem um que fez ninho agora. Quando passo o café da tarde ele tá arrebentando os peitos, de tanto chamá uma fêmea pro seu ninho novinho e arrumadinho. Mas me distraí, meu cavalo assustou-se com a onça e saiu desembestado, nem sei pra onde. Mas vou lá buscar, pro seu pai meu senhor num ficá num prejuízo maió. Não é um bicho caro, é até meio capenga... Mas é um bom companheiro, num sabe? Vendo a perplexidade dela, ele perguntou: Que foi Sinhá, com essa boca aberta, quem nem peixe morto? A moça sussurrou: Onça?... Que onça é essa, Sereno?

O velho respirou profundamente. Não haveria mais de esconder. Ela que soubesse a verdade e que fizesse o que achasse justo. Disse a ela com segurança: a mesma que pegou o Trovão... Aquele sangue todo foi porque quando cheguei ela já tinha garrado no pescoço dele – disse caboclo limpando instintivamente as mãos grosseiras nas calças. A moça mostrou-se inconformada: E você não fez nada para ajudar o coitado? Não tinha uma arma, Sereno? Sinhazinha, ele caiu por cima da bicha, esperneava como um porco endemoninhado... Endemoninhado é você, miserável! Ele era o alazão mais valente que conheci... Só que havia uma onça mordendo o seu pescoço... E um homem medroso e inútil assistindo a sua morte desesperada! Que queria que o Trovão fizesse?... Sereno, se calou constrangido. E ela quis saber mais: E depois, Sereno?... Sinhazinha, num é nada fácil chegar perto de dois bichos grandes e raivosos... E eu só tinha mesmo o meu facão de mato e não queria ferir ainda mais o Trovão. Sim, mas o que você fez? – ela implacável. Eu nada, Sinhazinha, a onça é que resolveu desaparecer. Onça é um bicho covarde. Só pega pelas costas, sangra e espera morrer. Mas se sentindo insegura ela larga e fica de longe só espiando. Esperando a hora de comer sossegada. E o outro, que também é bicho, sabe que vai morrer e que ela vai vir lhe rasgar as tripas. É só uma questão de tempo... O mundo dos bichos é assim mesmo, Sinhá. Ninguém muda não. Vosmicê ta triste e eu também... Mas o Trovão tá não... Só tá esperando os primeiros lampejos do dia, pra correr por essas terras sem fim, pelos campos e pelas matas fechadas, num tem mais nada que lhe impeça... Vai conhecer todos os lugares onde nunca tinha ido, vai beber água do rio grande e vai saltar nas ondas da praia... Enquanto isso nós vai fica aqui chorando de tristeza, porque num pensa que ele ta livre como nunca foi... É que como nós só sente o sentimento da gente, só pensa com a cabeça da gente, então acha que o trovão ta sentindo e pensando a mesma coisa, Sinhazinha... Não tenha raiva não... Que ele não pode aparecer pra vosmicê e lhe contá como que é lá donde ele vem, ele vai ficar triste por causa da sua tristeza...

A moça se esforçava para aceitar aquela sabedoria estranha, que quase desdenhava os seus mais puros sentimentos, todas as coisas que aprendera a sentir. Mas, embora não tivesse coragem de dizê-lo, até que gostava muito de imaginar seu querido Trovão suando da correria que tanto amava, brilhando ao sol e ao luar. Ele amava o vazio dos espaços, os obstáculos que vencia, amava o vento revirando as suas crinas, enchendo-lhe os pulmões no peito enorme e musculoso, e depois expirava com força fazendo seu próprio vento, era quase um deus da natureza... Ah, como ele gostava disso... – dizia a si mesma. Alagada da própria ternura, disse então ao velho: Ele lutou até o último instante não foi, Sereno?

Ele era valente demais, eu o conhecia desde que era um potrinho muito abusado... Sou lhe muito grata, quero que fique, se alimente bem e descanse bastante. E depois vá buscar o pangaré, antes que essa onça o coma, já que não comeu o Trovão, pois que os homens foram buscá-lo antes disso... Sereno sentia-se mais à vontade agora, já sentado também no degrau de baixo. E completou: Vou Sinhazinha, antes de clariá vou atrás dele. E ai dela que se meta... Faça isso por mim, Sereno – ela pediu com raiva.

Não posso prometer, Sinhazinha... Não Sereno, não se arrisque, leve uma arma... E se ela lhe pegar pelo pescoço, como fez com o Trovão?... Vosmicê num fique triste não, Sinhá... Também sou meio bicho, já fiz muita coisa nesse mundo de meu Deus... Já matei oito onças, seu pai meu senhor pode lhe dizer... Uma delas ia morder era o pescoço dele... É que de uns anos pra cá elas estavam sumidas, que os cachorros farejam a catinga delas de longe... Gato tem raiva de cachorro e vice-versa, num sabe?

Eu prometo, Sereno. Vou contar para os meus netinhos essa estória. E vou me lembrar de dizer que você foi um herói, que não pode salvar o Trovão, mas veio de pés buscar homens, para que ele tivesse um enterro digno. Meus netinhos vão aprender a odiar todas as onças, porque essa matou o Trovão... Mas eis que tais palavras indignaram o velho filho-do-mato, e ele quis ser exato: Não, Sinhazinha... Isso não é certo, não é verdade não... Como, Sereno? Se ela não matou o meu alazão, então quem foi?... Fui eu mesmo, Sinhazinha... A moça de um pinote ficou de pé, com o dedo em riste, enfurecida lhe disse: Seu traidor! Vá embora, suma daqui! Nunca mais quero ver sua cara! Não vou lhe perdoar jamais! Vai... Antes que eu grite por alguém para lhe surrar no pé-de-jurema, desgraçado!

Naufragados novamente em profunda tristeza, ambos se foram. Ela para chorar na cama e ele no mato. Mas nenhum dos dois conseguiu dormir. A moça rolou na cama, sobre o lençol úmido das suas lágrimas, até que lhe viessem chamar para o almoço. Não foi. À tarde, na hora da refeição também não quis sair do quarto, deixando a todos apavorados. Seu pai começou a preocupar-se, vendo que as mucamas não paravam de cochichar pelos cantos. Resolveu-se a sacudi-la. Entrou no quarto como um furacão para intimidá-la e foi querendo saber o porque daquele drama. Sabia o porque, também sentia muito pelo alazão, sabia o valor que tinha, mas não queria perder também a filha. Sinhá estava desolada e não apenas pelo seu Trovão. As horas lentas da madrugada lhe convenceram de que havia sido injusta com o Sereno. Estava agora claro que quisera apenas poupar o animal de mais sofrimento. Não podia carregá-lo nas costas e com certeza não quis que o alazão assistisse a desgraçada da onça comer-lhe as carnes ainda vivas. Ela estava soterrada de remorso e com muito jeito fez o velho concordar em mandar buscá-lo. Assim também concordou em levantar-se para se banhar e voltar à vida normalmente.

Alguns dias depois estava novamente sentada no alpendre, mas dessa vez assistiu a obra da natureza que se comprazia em dispor da sua atenção. O dia terminou. Escureceu por completo. Ela se lembrou da noite em que se assustou com Sereno. Dessa vez queria imensamente que ele lhe trouxesse a candeia. Havia preparado algumas palavras para lhe pedir que perdoasse a grosseria. Ninguém lhe dissera uma palavra durante esses dias, tinha a impressão cada vez mais densa de que não lhe queriam falar a respeito. Uma luz veio de dentro, mas pelo andar sem botas não poderia ser Sereno. Era uma mucama, que foi dispensada. Sinhá só queria a luz do velho caboclo, como naquela noite. Agora queria gostar dele, da sua sabedoria e da sua paz. A lua começou a aflorar, derramando seu prateado pelas colinas que pareciam abraçar em segurança a mansão. De repente, algo mexia nas folhas do pé-de-jurema-branca, que pareciam lhe acenar variando o reflexo do luar. Então, para sua imensa surpresa ouviu com nitidez o canto mavioso de um sabiá... Mas como? Sabiá cantando há essa hora? Não pode ser... Não queria aceitar o que seu próprio silêncio lhe dizia, lutava contra com todas as suas forças... Então ouviu de novo, logo ouviu outra vez e de novo tornou a ouvir... As defesas que havia erguido em si própria foram ruindo a cada canto, como se fossem rojões de poderosos canhões. Até que não pode mais sustentar a certeza que preferia. O sabiá só podia estar feliz. Tão feliz que nem se importava com a noite, não queria esperar o amanhecer! Se quisesse vê-lo sempre feliz, devia afastar a tristeza. Libertá-lo do próprio peito para que fosse completamente livre, para que cantasse onde quisesse e quando quisesse. Seu canto não era triste como o de outros, mas vigoroso e doce como o de uma flauta da natureza. A mucama voltou com um semblante pávido, mas quedou-se quando à luz da candeia viu que o de sua Sinhazinha sorria para a lua, já em seu esplendor. A mucama lhe disse: Sinhazinha, o seu pai mandou meu irmão e me primo buscar o Sereno... Mas eles não querem falar, estão com medo. Medo de que? Diga logo... Não fica brava comigo não Sinhazinha... Fala de uma vez, mulher... É que a onça pegou o Sereno também, Sinhazinha...

Completamente perplexa, a mucama ouviu a Sinhá lhe dizer com doçura: Não fique assim tão triste. Há essa hora ele deve estar bem assobiando por aí... Por onde, Sinhazinha?... Pela natureza, pelo céu, pelo rio grande, ou se lavando nas ondas do mar... A pobre mucama não conseguia atinar com aquelas palavras surpreendentes e Sinhá completou: Anda, pode deixar a candeia na arandela e vá pra dentro. Se precisar eu lhe chamo, agora vá. Quando mais tarde seu pai veio lhe buscar para dentro, aliviado pelas falas da mucama, encontrou-a bem disposta, quase feliz para aquelas circunstâncias. Sinhá aproveitara o tempo para fazer uma prece emocionada, repleta de gratidão e amizade, pela alma do velho Sereno. Durante toda vida estivera bem ali e nem o havia notado. Mas havia sido de grande valia justo no momento que mais precisou. Se estava feliz a ponto de assobiar no galho do pé-de-jurema àquelas horas, então deviam estar todos felizes: O Sereno, sua pobre mãe e também o Trovão. Não, não queria mais pensar em tristezas. Foi quando seu orgulhoso pai, sentindo necessidade de participar daquele momento lhe disse: Deixe estar, querida... Aquela maldita onça não irá longe... Eu me encarregarei disso pessoalmente.

Lou Poulit
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São Jorge e o Dragão

Sentados em bancos tipo meia-bunda, Hermes e Cuia haviam acabado de chegar ao balcão da birosca. Cuia era bebedor dos bons. Mulato quase negro, de fala mansa e bigodinho de chinês. Bom malandro, sobrevivente a tudo. De terno e gravata daria um excelente relações públicas. Só bebia cachaça e tinha preferência: Ô Portuga, dá meu marimbondo aí! Já seu amigo Hermes era letrado. O Vela, como era chamado na adolescência, era magérrimo, branco como um defunto, parecia meio lento em tudo. Havia se afastado dali por alguns anos e nesse tempo fez faculdade, arrumou emprego, casou, separou, casou de novo, separou de novo, casou mais uma vez... Continuava mal bebedor, pedindo a mesma marca de uísque: Ah... Bota qualquer um aí, Portuga.

O Cuia só observando. Em sua cabeça um silêncio era bom conselheiro: gozado, o tempo passa e as pessoas vão se misturando. Aquela que conhecemos desde dos tempos das pipas e peladas, agregam-se com outras que não conhecemos ainda, mas parecem tão importantes quanto as antigas, senão mais. E todas se dão muito bem umas com as outras, dentro do mesmo corpo.

Era manhã de domingo, dia de decisão no campeonato local de futebol. A birosca na encosta da favela já parecia lotada. Se a polícia chegasse de repente, com certeza ganharia o dia, porque já era quase impossível aos de dentro vigiar os que viessem de fora. O tumulto pacífico da birosca era como o Hermes. Com o passar dos anos alguns não arredam pé. Outros, desconhecidos, chegam, depois voltam e vão ficando. E outros tantos somem, por algum tempo ou definitivamente. Mas a birosca ainda era a birosca do Portuga e as alterações individuais não modificavam muito a mistura. Fora a fauna birosqueira, tudo mais parecia continuar nos mesmos lugares: as garrafas de bebidas mais caras, os salames e enlatados cobertos de poeira, no nicho de táboa a lâmpada devia estar iluminando o São Jorge que, a despeito da ausência de uma lança, não fora ainda comido pelo dragão, apesar de tantos anos de luta. O próprio Portuga sempre se dizia convencido de o aquele dragão enchia a cara de madrugada, depois que fechava as portas, e que só por isso não conseguira ainda comer o santinho.

O Hermes agora tinha uma identidade virtual, a julgar pelo palavriado que estava usando e que provocava a indignação dissimulada dos bebuns mais próximos: sabe, Cuia, o Portuga devia deletar aquele mictório compactado... Como é que é? – Espantou-se o amigo. É verdade, mermão... Aquilo é um banco de vírus! O Portuga é meio lento mesmo. Ele quer que esses caras acertem uma latinha daquelas. Já viu bêbado bom de mira?... Não – Cuia achou melhor não interromper – Nunca vi não... Então, Cuia, pra começar você tem que se espremer pra passar na portinhola. Só nisso já vai um risco. Depois tem que segurar a bebida, o cigarro, a portinhola... A portinhola?... Claro, mermão, vai que alguém deixa pra última hora e entra lotado. É uma senhora “portada”!... Riram-se os dois e o Cuia completou: É o que chamo de um arranca-rabo!... E o cara que não queria encostar em nada... Vai chegar em casa todo molhado – Hermes interrompeu - e a dona encrenca vai inserir o cara na casinha do quintal, vai passar a noite junto com o Totó!

Ô Hermes, por falar nisso, cadê a Laurinha?... Laura? Ô Cuia, que estória é essa de “por falar nisso”? Eu nunca dormi com o Totó não. Você precisa ler as atualizações do meu perfil... Ler as atualizações... – Repetiu o outro perplexo. E faz isso rapidinho, porque eu tô saindo, Cuia... Você tá saindo... Já vai embora?... Que vou embora, cara? Quis dizer que tô desistindo das mulheres dos outros... – e aproximou-se do ouvido do amigo – Estou apostando todas as fichas na mentirinha... Que mentirinha, Hermes?... Ô rapaz, aquela gata gorducha, que trabalha na “lan house”, vai dizer que nunca viu?... Sei, da loja de internet ali no fim da ladeira. Mas não era a Laurinha a razão da sua vida?... Laurinha nada... Se arrumou com o dono da firma, agora desfila de gerente... Ô meu irmão... – O Cuia mostrou-se penalizado – Que azar... Azar? Você não sabe da missa a metade. Depois dela já tive a Mariazinha, a Teresinha e a Socorrinho... É mesmo Hermes?... Tô te falando, Cuia, mulher dos outros agora pra mim é homem!... Nenhuma delas deu certo, né?... Não podia dar: A Mariazinha só queria saber de ganhar coisas caras... Ih, mermão, isso ia te deixar na miséria... Deixou mesmo. A Teresinha no início era uma santinha, o marido tinha sido atropelado, vivia numa cama, e ela passava o dia fazendo sexo pelo computador... Mas isso não resolve, Hermes... Não, a gente saía toda semana... Então, qual foi o problema?... Ela acabou viciada, Cuia. Perdeu a fibra... Como assim, não era a sua mulher?... Não!! Era mulher do computador!!... Ô Portuga, dá mais um aqui pro Hermes!

Cuia precisou pedir mais bebida para dissimular. Tinha muita gente em volta olhando, querendo saber quem era aquela tal mulher do computador. Sem se dar conta e parecendo soterrado de alguma culpa, Hermes foi se explicando: Mas a Laura, ô Cuia, ela não foi a única culpada, sabe? Porque quando comecei a desconfiar dei de ficar deprimido. Depois, sabe... Eu não dava mais cem por cento, depois nem oitenta, e foi diminuindo, diminuindo a transmissão dos dados... Entende?... Os dados? Ah, sim, acho que entendo. Mas e a outra?

Quem, Cuia? Já te falei, depois foi a Mariazinha... Me deixou numa miséria de dar gosto. Ô acesso caro aquele, sô... Aí eu não podia mais fazer outras coisas das quais gostava e sentia falta, não tinha grana pra nada. Estourei o cartão de crédito. Ninguém olhava mais pra minha cara, mermão... Tentando entender melhor, o Cuia perguntos pelos dados... Ah, a transmissão voltou a cair, né? Chegou a menos de um quilobite por segundo! Ô desespero o meu... Por que você não fez uns programas, pra variar?... Programa, não fiz nenhum, Cuia. Mas baixei tudo que pude baixar. Todo dia era dia de “down”... E nada de “up”... Nem um cachorrinho? – O Cuia perguntou brincando, para tentar levantar o astral do amigo... Nem um, era só cavalo-de-tróia!... Essa eu não conheço ainda, mermão... Nem queira, Cuia. Depois você tem que fazer uma faixina geral. É muito chato mesmo. E se perdesse o HD nunca mais vinha aqui beber com você. Em falar nisso, ô Portuga! Cadê o meu uisquinho?... Já vos dei, ó pá!... Tão dá outro!

Da posição em que estava, Cuia percebia o interesse crescente dos bebuns em volta na estória do Hermes, mas achou melhor não interromper. O amigo devia estar precisando desabafar. Depois, eles não poderiam mesmo entender aquele dialeto de informática. Também não entendia bem. E o Vela continuava falando: Agora a Teresinha, Cuia, nas primeiras vezes aquilo chegava sem jeito, olhando pro chão... Mas dali a pouco a santinha virava o demônio com rabo e tudo. Caraca, mermão! – O Cuia completou – Você só no piloto-automático... É isso, Cuia, o navegador era dela. Ela que escolhia a página... E num tinha anúncio não!...

Ao ouvir tais palavras, um dos bebuns já bastante calibrado, amigo dos tempos das pipas, chegou-se ao ouvido do Cuia e perguntou: Ele tava vendo televisão ou o que?... O Cuia dissimulou: Ainda não sei, mermãozinho. Fica na tua aí, na moral. Deixa o cara acabar de falar, valeu? O bebum voltou meio inconformado pro canto dele e o Hermes falando: Mas foi assim só nas primeiras vezes. Pôxa, Cuia, eu já tava apaixonado por ela quando, numa tarde, começou a balbuciar umas arrôbas diferentes... Que arrobas, Hermes?... Endereços, Cuia... Ah, dos outros amantes dela?... Que outros amantes? Amante era eu, o resto era virtual! - Hermes indignou-se, deu um murro na táboa do balcão e pediu mais uísque. Do seu canto, sentindo-se desprezado, o bebum disse com a voz lenta: Taí... Que machão que ele é... E recebeu um olhar enviezado do Cuia.

O Vela nem se dava conta do que acontecia à sua volta, ia desfiando o seu rosário enquanto a audiência dos bebuns aumentava: Eu não queria bloquear nem excluir a Teresinha, mas a cada nova tentativa ficava pior... Aí conheci a Socorrinho, que também era Maria, Maria do Socorro... E qual era o problema dela, mermão?... Não era ela não, Cuia. O problema era o marido dela... Ué, por que?... Porque o cara tinha mais de dois metros de altura, era muito forte e ruim que só o cão... E ele sabia que era chifrudo?... Sabia, mas era apaixonado pela Socorrinho e já tinha mandado dois pra lixeira, cara!... Ih, canoa furada, Hermes... Então uma tarde ela me chamou na casa dela... E você foi, maluco?!... Fui, ela me disse que estava precisando de um desencanador... Ocê é doido... É foi doidice mesmo. Quando eu pensei que ia carregar o arquivo, a trezentos kilobites por segundo... O cara te deu o flagrante... Não, tocaram a campanhinha... Ô mermão, ninguém toca a campaínha pra entrar na própria casa... Pois é, mas já derrubou a velocidade, né? Era o filho da vizinha. Ela despachou o moleque a agente voltou pro matadouro...

O bebum desprezado era um bebum respeitado. Toda hora fazia uma careta, ou um gesto, e os demais bebuns, formando já uma meia-lua às costas do Hermes, trocavam impressões. Percebendo tudo, o Cuia tentou levantar a moral do amigo: Aí você fez o couro comer... O bebum balançou o dedo indicador e fez beiço, querendo dizer que não acreditava. O Hermes respondeu: Mais ou menos, Cuia... Os bebuns metidos a jurados dissimularam uma estrondosa risada, quando o bebum desprezado saiu da birosca fazendo uma porção de gestos. Mas não demorou muito, alguns minutos depois lá estava ele novamente, pedindo licença para passar e voltar ao seu canto. Que mais ou menos é esse? – Perguntou o Cuia. Eu disse mais ou menos porque quando o programa estava quase carregado, ela me sussurrou que ouvira um barulho na cozinha. De repente o cara entrou no banheiro, já tirando a roupa, e quando me viu perguntou o que eu estava fazendo ali... E você, mermão, por que não pulou a janela?... Que janela, Cuia? Primeiro porque não tinha uma por onde eu pudesse passar. Segundo porque o banheiro era tão pequeno e o cara tão grande, que eu tinha a impressão de que éramos duas sardinhas numa lata. Ou melhor, uma sardinha e um tubarão! Que coisa, rapaz. Ele entrou tirando a roupa e eu tentando vestir a minha!... E aí?... Ai eu disse que já sabia qual era o problema... Como assim, Hermes?... É, mermão. Vou explicar: Quando corri pro banheiro, logo vesti a cueca. Aí ouvi o cara falando que havia chegado o caça-vírus. Então, em vez de por a roupa, eu desenrosquei o sifão da pia e abri a torneira. Só não deu tempo de abotoar as calças... E o cara caiu nessa? Mas que otário!... Bem isso eu não sei. Porque eu disse a ele que no dia seguinte voltava pra tirar o entupimento. Ele me pediu que saísse do banheiro porque queria olhar o serviço. Enquanto ele olhava eu fui saindo. Quando pus o pé na rua, mermão, desembestei que nem a mula-sem-cabeça! E ainda passei uma semana correndo. Vendo o cara atrás de tudo que era poste.

A turma de bebuns já não dissimulava mais as risadas e os julgamentos. E já não era composta apenas de bebuns, nem somente de homens. Haviam chegado mais torcedores e algumas prostitutas mas, devido a bebida já em conta alta e ao peso das lembranças, o Vela não se importava. Expunha-se ao ridículo, despertando a piedade de alguns. Cuia não sabia mais o que fazer. Pensava em como levar o amigo para casa, enquanto ele ainda pudesse andar com as próprias pernas. Mas de repente o Hermes se empolgava e recomeçava a falar, sem tramelas na lingua já melosa. Estava claro que ele não se submeteria a nenhum conselho: E tudo por causa daquela piranha, Cuia! A gente era feliz. Eu percebi muito antes e falei com ela. Disse que o Afrânio ia querer lotar o disco, secretária novinha, com tudo no lugar, se sentindo importante... É, o cara foi esperto... Ela é que foi uma vagabunda! Eu avisei antes, ela aceitou porque se entusiasmou com as gentilezas do Dr. Afrânio – disse o Hermes com desdém... Mas clama, mermão, isso agora já é passado. Esquece essa estória e vai em frente. Você não quer pegar agora a mentirinha? Então pega e esculacha, mermão. Vai te fazer esquecer as outras. Inclusive a Laurinha... Ah, a Laura não, Cuia. Eu não consigo esquecer o que ela me fez. Nunca, jamais vou perdoar aquela mulher. Se encontrar com ela na rua eu arrebento a piranha de porrada.

Sem sair do seu canto, o bebum desprezado balançava o dedo e fazia beiço. Os demais, já em franco debate, se dividiam. As prostitutas, em grupo, se defendiam. Alguns torcedores defendiam as prostitutas, para que tivessem o que fazer depois do jogo, afundar a mágoa em caso de derrota. O Portuga não tomava partido, bastava-lhe vender bebidas para todos. No fundo todos se divertiam, aproveitavam o fim-de-semana. Até o dragão se divertia com aquele São Jorge sem lança! Menos o Vela. Estava realmente consternado, não parava de imaginar formas alternativas de trucidar a Laura. E usava as opiniões dos bebuns para reorientar as suas tramas, curtindo a dramatização da sua desgraça, como se lhe causasse prazer. Numa dessas, ao dirigir-se ao grupo de prostitutas para ver sua reação, percebeu que uma delas saia de trás do grupo e atravessava em sua direção. Ele não queria falar com ela, era apenas uma puta, como dizia ser também a Laura. Tudo farinha do mesmo saco! – Disse em definitivo.

Quando o Hermes escutou aquela voz de mulher lhe dizendo um curtíssimo “Oi” pelas costas, imaginou que o mundo havia parado de repente. Um silêncio palpável preencheu o ambiente. O Vela tentava decidir o que fazer, sob o peso de muitos olhares. Quando se voltou para trás, viu que havia uma mulher muito bonita no centro de um pequeno espaço, obviamente aberto para ela. Apesar do congelamento generalizado, apenas o bebum desprezado balançava a cabeça, mas agora positivamente. O Hermes não conseguia articular uma só palavra. Dentro do seu íntimo encharcado de uísque “qualquer um”, tudo era escuridão, uma multidão de vultos ia e vinha, sem que ele pudesse organizar o pensamento. Não teve coragem de dizê-lo, mas não restava nenhuma dúvida: só podia ser a Laura. Queria olhar dentro dos seus olhos, pois conhecia-lhe o olhar, mas a bebida já não o permitia. E quando a mulher lhe estendeu docemente a mão, com um sorriso calmo e soberano no rosto, o Vela não conseguiu fazer resistência. E deixou-se levar lentamente para fora, pela mão, como uma criança ingênua. Atravessando o silêncio estupefato e o julgamento sem veredicto de cada um dos presentes, sumiram os dois entre os torcedores que, na rua, preparavam-se empolgados para tomar o caminho do estádio. Como se houvessem ali dois mundos paralelos, o casal e os torcedores não se confundiam, mal se notavam. Era de se pensar que não estivessem no mesmo tempo e no mesmo lugar. Uma mão imensa e irresistível parecia abrir aquele mar de gente, enquanto o casal sereno e mudo escapava dos julgamentos, sem que se molhassem sequer no suor dos torcedores.

Na birosca, foi o bebum desprezado que quebrou a perplexidade. Deu um tapa na lateral do balcão, fazendo um estrondo que deixou o Portuga furioso. Ô Portuga! Dá outro marimbondo aqui pro meu amigo Cuia, que ele está pagando o meu também – e virando-se para o mulato, que se mantinha pensativo, sussurrou - como nos bons tempos, hem Cuia? Uma a uma as pessoas foram se reacomodando pela birosca. O bebum sentou-se no banco, que o Hermes deixara morninho, disse com ar sábio: Ah, o amor. Coisa mais linda é o amor... Encafifado, o Cuia não respondeu mas quis saber: Sabe, você até pode me achar com cara de panaca, mas eu não tenho certeza de que aquela mulher era a Laurinha. Se bem que era muito parecida, não vejo há anos, mas acho que não era não... O bebum virou a sua cachaça toda de uma vez e depois ficou olhando para o chão, reflexivo, com um sorriso torpe nos lábios. Depois de um tempo, finalmente falou claramente: Não era ela mesmo, Cuia... Mas então, quem era ela?... Depois de fazer uma careta, como se rebuscasse o passado, explicou: Você não se lembra da Fátima? Não, né. A menina que vendia bala na estação do trem... Não, não me lembro mesmo... Eu conheci as duas desde pequenas, desde quando eu era um homem respeitado. A Fátima é mais nova, mas sempre foi parecida com a Laura. Depois meteu-se com aquele bandido, famoso por cortar as orelhas dos seus desafetos... O Pinga-Fogo... Isso, ele mesmo. Ele sustentava a ela e a outras molecas. A Fátima engravidou para se sentir mais segura, mas o cara apareceu cheio de buracos pouco antes do bebê nascer. Ela então andou na mão de um e outro bandido, pra manter o pirralho. Depois desapareceu de repente. Passou uns anos fazendo programas com gente endinheirada, gerentes de banco, diretores de empresa. Tem três meses que ela reapareceu, está morando no bairro aí de trás... Mas por que ela tomou aquela iniciativa?... Porque, como lhe disse, coisa mais linda é o amor...

O Cuia estava inconformado, não conseguia entender direito. Não vai me dizer que ela está apaixonada pelo Hermes?... Que apaixonada, Cuia. Ela nem conhecia ele direito... E como ela veio parar aqui na birosca?... Eu chamei, ora. Ela é puta, não é adivinha. Mas eu conheço ela muito bem. Você sabe que conheço as putas daqui. Não posso mais pagar pelos serviços delas, mas conheço bem várias delas e sou amigo delas... Que coisa de doido, quem vai pagar? Quando o Vela entender tudo não vai tirar um tostão do bolso... Nada de doido não, Cuia. Ela não veio receber dinheiro não... Como não?... O bebum parou, se ajeitou no banco e continuou: Cuia, meu velho Cuia... Eu já vivi um pouco mais que você. E lhe digo com toda a convicção: As mulheres que vivem de programa não são todas iguais. Mas são seres humanos todas elas, têm sentimento. Eu não pedi, apenas perguntei se ela queria fazer isso. Ela confiou em mim e topou fazer... Mas o Hermes não ama essa mulher... Já deve estar amando, Cuia... Não é a Laurinha... Que diferença faz, Cuia? Ele precisava amar, se regenerar, tirar o paredão de dentro dele. Você acha que o amor dele, que ele não pode exercer e não serve pra nada, é mais amor que o da Fátima, dado de graça, pela necessidade dele e por amizade a mim? E ademais ela não tem nada a perder, tem a dar. Qual o pecado nesse caso? Mas o Vela podia ter perdido a vida, lá no banheiro do caça-vírus. E noutras vezes, porque ficar pegando as mulheres dos outros...

O Cuia ainda não aceitava plenamente a conversa do amigo, porém reconhecia certa razão. E será que o Vela vai segurar a peteca? Do jeito que saiu daqui, não sei não... Ora, Cuia, ela é uma mulher sofrida, experiente, com certeza vai dar o jeito dela... Mas ele não vai se casar com ela, né?... Casar? Acho que ela não ta pensando nisso, não. Prostitutas nunca pensam em casamento numa primeira ocasião. Não é esse o trato. Se você sair com uma delas e falar em casamento, nunca mais ela sai contigo, pra não apanhar do cafetão... Mas vai que a Fátima pensa... E daí? Eu não sou cafetão, não ganho dinheiro com ela... O Cuia pediu a conta ao Portuga, pagou a cachaça e pendurou o uísque, reclamando do preço. Depois, com ar de satisfeito, disse ao amigo: bom, tomara que pelo menos você esteja certo e ela saiba acender velas. Senão, quando ele voltar aqui, vai dizer que de repente bateu um vento... Que nada, Cuia, você num entende nada de velas. Ele vai dizer que quando o programa estava carregado, caiu a conexão!

Foto de Mirror Man

Espero-te! Sempre!...

Espero-te pela manhãzinha
Quanto o sol acorda e os sonhos
Cor-de-rosa, são substituídos
Pela realidade do dia à dia!
Vens num comboio, rápido,
Sem paragens intermédias,
De costa à costa do sentimento,
Repleto de imagens em movimento!
Imagens de amor, de desejo,
De sombras de luz e anseios,
Sorrisos tristonhos, e suspiros,
Amargo-doces em nossas bocas,
Coladas num amplexo sem fim...
Estou na estação terminal...
E o rápido vem à hora!
Na hora certa, afinal!
A tempo de nos amarmos!
Sem tempo limite para acabar...

Espero-te pela tardinha,
Quando o Sol começa a descer,
A caminho do descanso,
Depois de ter nos dado,
Tanto da sua luz e calor!
Trazes-me um pouco mais,
Daquilo que me dás,
Todos os dias, simplesmente...
Por existires e teres cruzado,
Um dia no meu caminho!
Lanchamos, de olhos nos olhos,
Frente a frente, tocando-nos
No peito o sentimento,
Que não cansa, antes descansa,
E nos dá a força, para viver,
E continuar a querer,
Cada vez mais, sonhar...

Espero-te à noitinha,
Depois do jantar, à luz das velas,
Depois do beijo de sobremesa,
Aquele beijo doce mel,
Derretendo calorias imensas,
Acendendo fornalhas intensas...
Na caminha, à luz da candeia,
Tremeluzente, brilham nosso olhos,
De paixão, docemente, incandescente
Teu corpo, enroscado no meu,
Tomando conta de mim,
És minha, sou teu,
Possuímo-nos, docemente,
No principio, e à medida,
Que a noite avança,
Abrimos o ar de nossos pulmões,
E a fornalha aquece, acelerando
A paixão, já de si intensa...
Alagamos os lençóis
Com nosso desejo despejado
Em beijos, catadupas e gemidos,
No cansar nosso de cada noite,
Um cansar que mais que nunca,
Nos descansa, quando o sono,
Toma conta de nós...
Sem sequer darmos conta...
E nossas respirações,
Antes aceleradas,
Tomam o ritmo de duas crianças,
Abraçadas e renascidas,
Num sono de criança,
E sonhamos de novo,
Os sonhos de nossa infância,
Como dois miúdos,
Felizes sem medo do futuro,
Que amanhã, de manhãzinha,
Vem de novo, sorrateiramente,
Ao nosso encontro,
E nos encontra, abraçados
E confiantes...

Mirror Man

Foto de Zanja

Overdose

Sua boca me chama me grita e me clama
Seus olhos me seguem me refletem e me ilumina
Sua pele ardendo em desejos me toca e me fascina

E neste momento me vem o desejo louco de entregar-me a você
De sentir seus lábios em meu corpo
E desfrutar desse desejo louco de te ter

Que nossa noite seja longa
E que em cada toque de suas mãos em meu corpo
Faça-me delirar em overdose de prazer
Faça-me sentir vontade de nunca mais sair de você.

Foto de Edilayne Campos

Lembranças.

Era uma noite normal, com um luar profundo. O céu sem estrelas denuciava que a chuva estava por vir.
Pensativa, sentei-me num banco qualquer, esperando o tempo passar. Esperando a mágoa diminuir, esperando tudo, menos a sua volta.
Já era tarde quando o primeiro pingo de chuva caiu sobre a minha testa, escorreu pela minha face, rumo a minha barriga. Foi como se você me tocasse outra vez.
Aquela gota de água gelada me dava novas sensações. Me despertava prazeres, que pensei nunca sentir.
Olhando o céu, e mesmo ele estando quase vazio, tive a impressão de que via sua beleza ali refletida.
O vento calmo soprando de forma que me me fazia lembrar a sua vóz em meus ouvidos, declarando seu amor por mim.
Amor esse que se findou quando a ilusão passou, como essa noite, que agora se vai com o nascer do sol.

Foto de Jamili

Ainda te amo

Um vento forte balança minha alma,
Mexe de uma forma incrível com tudo que ali abita,
Simplesmente por lembrar de sua presença.
De momentos que sem que esperávamos se foi....
Como a ave a procura do verão...

Dentro de mim ficou apenas
A saudade que dói e machuca,
Mas que consola o aflito coração,
Que se desespera, e chama pelo seu nome;
Que se perde em meio ao vazio de uma noite escura.

Sonho? Talvez, mas acordar foi como...
Uma flecha ultrapassando meu peito.
Ah! Como seria bom, se eu pudesse,
Ao menos te tocar, sentir que dentro de você
Ainda existe, mesmo que uma quantia mínima:
Um pouquinho de mim!

Só espero sua felicidade...
Pois só assim serei ao menos um pouco feliz.
O porque só Deus sabe,
O que eu sei é que te amo e vou te amar enquanto eu viver...
E quem sabe se depois disso não vou continuar te amando.
Tenha a certeza que sim!

Foto de Jojo

Dá-me esse beijo*

Dá-me esse teu beijo, seguido do forte abraço,
Percorre com essa mão todo o nosso espaço.
Faço-o mesmo e sinto, sinto esse calor,
Que queima estes dois corpos que respiram amor.

Esse teu beijo enlouquece quem já é louco.
Beija sem medo, percorre esse meu, teu corpo.
Dá-me um abraço, depois do prazer que não deixa respirar.
Que essa noite é nossa... a noite é de quem sabe amar

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