Forma

Foto de Carmen Lúcia

ETÉREO

“ Etéreo”

Dança...Faz de tua arte simbologia do amor,
Toca o chão, o ar, a emoção... acaricia a dor,
Tange o invisível, o inaudível, o irreprimível,
Languidamente , candidamente, sensivelmente,
Esparrama no palco da ilusão a tua fantasia
Que de tão real se transforme em verbo,
E em forma corpórea, materialize-se,
Realizando sonhos, antes mera utopia.

Dança...trepida corações impacientes
Esvoaça por entre corpos irreverentes
Suaviza com doçura os momentos...
Torna-os perenes, registra-os na alma
De quem permite por eles se enlevar
E com eles também dançar, flutuar, sonhar...

Dança...Recria gestos com toda maestria,
Desbrava o mundo a que já pertencia
Sacode-o, encara-o, envolve-o de tua magia
Levita, transcende, ascende, rodopia,
Relata tua vida ao som de melodia,
Performances que geras, bailando poesia,
Desenhando versos, arabesques e rimas,
Nos passos compassados da tênue bailarina.

Carmen Lúcia

Foto de Dirceu Marcelino

DEVANEIOS - DUETO ou TRIETO EM DUO - Homenagem a 'LU LENA'

*
* Homenagem a "LU LENA"
*

DEVANEIO EM TI

Contemplo a nudez do teu corpo
onde minha imaginação caminha
no campo da fantasia
ressurgindo sonhos e magia

pintando tua nudez numa tela
com todos os matizes em aquarela
vejo tua alma levitar
Suave brisa do vento no ar

Extasiada nesse devaneio em ti
minha alma entra em tua nudez
perpetuando essa imagem
teu corpo toma forma da realidade

ouço anjos tocando harpas
num acorde perfeito
pincel crepita entre meus dedos
quando pousa em teu peito

instante que sinto em meu ventre
águas cristalinas de uma vertente
jorrado desse êxtase profundo
sussurro teu nome entre os dentes. ( Postado em 13/4/2008 por
LU LENA )

*************
DEVANEIO - ( Escrito em 1973 por Dirceu Marcelino )

SONHO! Não sei por quê? Constantemente.
Imagino-te e passo a contemplá-la,
Meiga e singela com transparente
Vestimenta e então desejo amá-la.

Não sei por quê? O verde do opala,
De teus olhos me ofusca, amargamente,
E, não consigo, bem de perto olhá-la,
Para confirmar se és tu, realmente.

Parece que há muito te conheço,
Estremeço ao sentir tua presença,
Toda vez que levemente adormeço.

Como agora, a todo instante na crença,
Que já te conheço e não a esqueço
Por isso escrevo, antes que desvaneça.

DEVANEIOS II ( Escrito em 14/04/2008 )

Em tuas escritas há algo que reconheço,
Inspiração, desejo e quero permaneça,
Entre nós o vínculo poético do apreço,
E do nosso dom adquirido de nascença,

Por isso é que te digo e não esmoreço.
E te digo, sinto aqui a tua presença.
E com isso, embora a brisa me aqueço,
E te envio para que também te aqueça.

Os raios de sol, com que rejuvenesço
E ao mentalizá-la em minha consciência
Eu renovo meus votos de grande apreço

Por iluminares minha inconsciência
Com esses versos tão belos e te agradeço
Eis que não há quem explique, nem a ciência.

(Eventuais erros, considero próprios da "licença poética", em proveito das rimas ) - Dirceu Marcelino.

Foto de Lu Lena

DEVANEIO EM TI

Contemplo a nudez do teu corpo
onde minha imaginação caminha
no campo da fantasia
ressurgindo sonhos e magia

pintando tua nudez numa tela
com todos os matizes em aquarela
vejo tua alma levitar
Suave brisa do vento no ar

Extasiada nesse devaneio em ti
minha alma entra em tua nudez
perpetuando essa imagem
teu corpo toma forma da realidade

ouço anjos tocando harpas
num acorde perfeito
pincel crepita entre meus dedos
quando pousa em teu peito

instante que sinto em meu ventre
águas cristalinas de uma vertente
jorrado desse êxtase profundo
sussurro teu nome entre os dentes

Foto de ShadowBird

Viver

Cada um escolhe a sua forma de viver, vivemos aprendendo todo o que nos rodeia.
O meu lema?
CARPE DIEM

Foto de Nellyra

Outono de um Amor

De repente as folhas começam a cair
O vento quente dá lugar a uma brisa fresca
Os frutos parecem ganhar vida
É o outono, a ultima estação
É dessa forma que vejo nossa paixão
Que floresceu como primavera
E hoje solta seus últimos suspiros
Anunciando o fim do verão

Já não sentes prazer ao ouvir minha voz
Já não sentes saudades se não te ligo
Já não sentes a falta de minhas mãos em teu corpo
Já não precisas de meu corpo em teu corpo
É o fim de uma paixão que foi tão quente
É a frieza do inverno que se aproxima
É a certeza de que o desejo já não é tão presente
É a queda soturna de um paixão que já termina

Quantos amores eu já tive
Quantos amores te roubaram o coração
Quantas vezes assisti essa derrocada
Quantas mulheres já não me chamam atenção
Só a saudade é tudo que sei decerto
Só a certeza que já não sou o mesmo homem
Só a tristeza do adeus que urge
Me forjando a ausência e saudade de você que já me consomem

Mas é o ciclo de vida que se fecha
Anunciando que a vida não para..., continua
É a certeza que um novo amor vou buscar
Onde quer que esteja, seja lá em qual for o lugar
Vou abrir novamente meu coração
Como a primavera abre suas flores ao pólen
Lhes permitindo o prazer da fecundação
E um novo amor há de vir
Me trazendo a dádiva de uma uma nova paixão!

Isso... se eu conseguir te esquecer!!!

Vou te Amar pra Sempre... Sempre!!!

Foto de diana sad

¨*sou eu¨¨*

Ter coragem de olhar a vida olho no olho
Sorrir e com ela brigar
Namora-lá e confiar
Chorar e cantar. Com a vida casar.

Eu creio em mim
Em algo maior
Vejo meu valor e dos meus irmãos
Sou ferro e fogo
Sou ar e solidão
O bem e o mau
Sou eu...
Do que o vizinho diz bossa até o carnaval
O meu sangue tem nome é rock
Eu amo alguém
Mais ainda no amor não tive sorte
Um dia eu cantarei pra você
Em versos simples teus olhos
Da forma que eu os vejo
Cantarei a sua boca da forma
Que eu imagino seus beijos

Enfim sou eu...
Tentando confiar na vida que deus me deu
O poeta escreveu
O que aos poucos sem saber leio e sem entender às vezes
Eu teimo, sem saber que cada estrofe tem o seu por que.

Ter coragem de gritar o amor encravado dentro do peito
Dar e receber respeito
Olhar olho no olho o sujeito: ser humano
E fazer de minhas vontades o meu ritual
Ri do que eu achar extremamente necessário
Chorar sim mais só pra aliviar...

Foto de Lou Poulit

A MONTANHA E O PINTASSILGO (CONTO)

A MONTANHA E O PINTASSILGO
(Parte 3)

Assim que o primeiro lilás de manhã rasgou delicadamente o horizonte, a montanha pôs-se a se catar, sentindo ainda o mesmo pressentimento da tarde anterior, que não a havia abandonado. Procurou em cada uma das suas reentrâncias, em galhos e entre relvas, porém, nem sinal do seu amigo pintassilgo. Nem uma sujeirinha que, ironicamente, lhe alimentasse a esperança. Então, com toda certeza ele não dormira na montanha. Ora, “sua” montanha tola ― ela tentou recompor-se falando sozinha ― serves de abrigo a tantos animais, tu mesmo dissestes a ele: Que me importa, azar o teu. Pois tome vergonha nesta tua cara larga e esqueça o pintassilgo. Quando precisar de ti ele te verá de longe e não se perderá nos seus caminhos de vento. Aliás, vento é o que não falta naquela sua cabecinha.

Piadinhas e ironias serviam para aliviar a tensão da montanha, porém não se pode tapar o sol com uma peneira. E no caso, o sol estava do lado de dentro. Por algum motivo incompreensível, que entretanto, naquele momento, tinha importância de último grau na sua lista de prioridades, ele havia se tornado tão querido, que os diversos perigos do vale se afiguravam muito mais que ameaçadores. A montanha havia criado um sentimento de proteção que jamais experimentara emergir dos seus subterrâneos. Apesar de crer na esperteza e admirar a agilidade do passarinho, via-o por demais pequeno e frágil. Em se lhe retirando as penas quase nada restaria. Era uma coisinha assim, à toa, que tinha medo até de vento... Onde já se viu? Medo de vento... Devia isso sim se preocupar com cobras, gatos e gaviões, que lá por baixo são em grande número e se aproveitam da mata densa para se aproximar sem que sejam percebidos, ou emboscar os desavisados. Não bastassem todos estes perigos, ainda haviam as redes espalhadas entre os ramos por caçadores impiedosos. Deve ser uma morte lenta e desesperadora ― ela gemia só por imaginar ― a se debater e embaraçar-se cada vez mais. E à noite, então? Preso na rede, logo chamaria a atenção de um morcego, que se regalaria a chupar calmamente o seu sanguinho tão pouquinho. Isso é menos o atendimento de uma necessidade básica e bem mais um exercício de degustação, nada charmoso na opinião da vítima.

Enquanto a montanha se catava, se torturava imaginando sanguinolentas desgraças, o sol prosseguia em seu caminho. Rapidamente a tarde chegou e logo os lilases acenavam no horizonte, o dia partia e a escuridão da noite não se demoraria. Durante aqueles imensos minutos, a montanha buscou freneticamente algum sinal do pintassilgo mas, para seu desespero, inutilmente. Então, entregue à sua própria fragilidade emocional, lamentou ser uma montanha. Tantas vezes invejara o pintassilgo quando ele saltitava em sua dança, ou quando fazia espetaculares manobras de vôo, ou ainda quando, tão despreocupadamente, ele simplesmente se espreguiçava. Observando-o nesses momentos, ela tinha a impressão de que, com tão comezinho gesto, ele era capaz de libertar do seu corpinho todas as energias noduladas e indesejáveis. Ah, como a montanha, há tantos milênios acomodada sob o próprio imenso peso, gostaria de saber fazer isso também. E com certeza não poderia fazê-lo em poucos meses.

Naquela noite a montanha não conseguiu pregar os olhos. Sabia que os pintassilgos não são notívagos, não havia uma chance de que ele surgisse das sombras, nem mesmo de que cantasse. Mas a cada pio de outros pássaros ela se permitia a ilusão, como forma de combater o desânimo, com base no reconhecido talento do pintassilgo para imitações. Chegou o novo dia e, um por um, seguiram-se vários outros dias e noites. A montanha havia se determinado a não desistir jamais e, investigando os sons do dia e da noite, descobriu uma grande variedade de animais que habitavam suas encostas e platôs, sem que, contudo, houvesse lhes dado antes alguma importância. Além disso, descobriu também uma outra variedade, em muito maior número, de animais que não emitiam nenhum tipo de som, mas que não apenas existiam como também mostravam-se muito ativos. E que todos tinham em comum uma relação vital consigo. Por todas as partes, na superfície e até mesmo nas suas entranhas, eles nasciam, viviam, se proliferavam e morriam. Muitos deles não viviam mais que um único dia, entretanto, enquanto esperava o reaparecimento do pintassilgo, a montanha pode acompanhar a vida de seres que vivem meses, no passo das estações climáticas, e de outros que vivem ainda por mais tempo. Nenhum deles substituiria o seu tão querido pintassilgo, que ela não cansava de esperar; nenhum deles, por mais tempo que vivesse, tinha longevidade comparável à da montanha; entretanto, nos últimos tempos ocorrera uma mudança de que apenas agora ela se dava conta. Não se tratava de uma mudança de nenhum dos animais individualmente, mas sim da própria montanha, e isso aumentava enormemente a ausência do pássaro, tão pequeno e tão importante, tão frágil e tão soberano na sua fantástica memória milenar. Mantivera com ele, até que desaparecera, um contato por demais curto, tempo usado na maior parte para críticas e julgamentos de pontos de vista particulares; todavia, ele estivera de tal modo presente na incansável busca da montanha, na esperança obstinada, que conseguira o que fora impensável para ela, somente por ser o motivo para isso: o pintassilgo não movera a montanha, mas fizera com que ela mesma deslocasse o seu próprio centro.

(Segue)

Foto de Lou Poulit

A MONTANHA E O PINTASSILGO (CONTO)

A MONTANHA E O PINTASSILGO
(Parte 4)

A se catar, como passara a fazer diariamente durante os últimos anos, a montanha se surpreendeu com algo estranho, entre ramos franzinos de um jovem arvoredo. Já havia visto coisa parecida e sabia não ser nada que a natureza produza de boa vontade. Logo a brisa trouxe um cheiro desagradável e ameaçador de fumaça, e tudo então ficou claro. Aquilo era uma gaiola, dentro havia um pássaro aprisionado e do lado de fora uma rede. O pássaro preso cantaria o seu canto, isso provocaria outro pássaro da mesma espécie, que viria reclamar seu direito aquele território e pronto, ficaria também este aprisionado para o resto da vida. Só pode ser coisa de gente ― asseverou a si mesma ― em nenhum lugar do mundo a natureza é tão cruel por tanto tempo. Embora possa parecer também cruel, o fardo do Criador é leve e o seu jugo é brando. A alguns metros para baixo dois homens, um maduro e outro bem jovem, fumavam os seus cigarros de palha, e riam, sabia Deus do que, tentando não fazer barulho.

Indignada pelo uso das suas encostas para tais fins, ela pôs-se a matutar numa forma de fazê-los correr de ladeira abaixo. Depois, em um segundo passo, encontraria um jeito de libertar o bichinho, de quem já se compadecia por demais. Até porque, ele parecia um pouco com o seu querido pintassilgo. A montanha começou então a produzir uma série de truques, como fogos-fátuos e sismos comedidos, pequenos segredos de uma velha montanha que, entretanto, não surtiram o efeito desejado e ainda assustaram a bicharada. Impaciente, a montanha batucava numa laje com as pontas dos dedos, usando para isso a queda d’água de uma tímida cascatinha que havia por perto, quando o pássaro da gaiola começou a piar a cada vez com mais disposição. Era um indício certo de que logo ele estaria cantando a todo peito. Necessário se fazia que agisse mais rapidamente, o que, para uma montanha milenar, não é lá uma coisa das mais fáceis e cômodas, a se fazer naturalmente.

Como os homens se mostravam inabaláveis, talvez insensatos por sequer imaginar o imenso poder de uma montanha, pensando bem, por demais burros simplesmente, ela optou por tentar impedir que o passarinho desse vazão aos seus impulsos canoros. Para isso, ela se aproveitou de um ventinho e se aproximou do arvoredo dissimuladamente. Chegou-se bem pertinho e, respirando antes profundamente, entrou na gaiola. Todavia, tamanho foi o seu susto, que saltou do ventinho e recolheu-se nas suas profundezas. E lá perambulou durante algum tempo. Aquilo tudo mais lhe parecia uma peça do destino. Vagou por entre as suas lembranças sem fim, relaxou nas suas profundas escuridões, onde os sóis jamais chegaram, e banhou-se nos seus refrescantes lençóis subterrâneos. Reconheceu por fim, que poderia estar fugindo da verdade, e isso é algo que uma boa montanha jamais deve fazer. As montanhas são sábias e fortes. Vivem muito e é justo que o sejam. Não conhecer uma determinada verdade pode ser um direito, mas tentar impedir a sua revelação é uma idiotice, uma fragilidade. A mentira ou a ilusão podem ser mais agradáveis à razão em certos momentos, no entanto corrompem os sentidos de ser e existir. Estava tentando criar uma certa realidade paralela e perdendo com isso um tempo muito precioso, que talvez custasse caro a outros pássaros.

Outra vez tomou-se de ânimo e voltou à gaiola. E lá, todas as suas parcas esperanças se dissolveram, à luz claríssima do sol que já se erguera todo acima do horizonte. Não podia mais negar, era mesmo o seu pintassilgo e, misteriosamente, cantava como um menino. Mas que ironia cruel! Teria que tentar interromper a sua inspiração, depois de tanto tempo lamentando a sua ausência. E nem tinha naquele momento mais tempo para as suas reflexões, pois um outro pintassilgo, pleno dos arroubos naturais da sua evidente juventude, já cantava e fazia manobras rasantes cada vez mais próximas à rede, com intuito de intimidar o outro, um velho inconveniente e abusado, um intruso, imperdoável. Embora não pudesse concordar inteiramente, a montanha percebia os pensamentos e a determinação do jovem, corajoso e afoito como todos os jovens. Mas a Providência concede maior proteção a eles, e ela estava ali para exercer esse papel. Ao antecipar que no próximo rasante ele ficaria preso na rede, numa atitude exageradamente emotiva para uma montanha, ela pressionou suas entranhas com tanta força, que os gases subterrâneos liberados provocaram uma ventania súbita e empoeirada. Correndo para encontrar um abrigo, os homens se afastaram, sem se dar conta de que o ramo não suportara o peso e a gaiola havia caído na relva.

Os segundos tornaram-se angustiadas eternidades. Ela viu os ventos se enfraquecerem até pararem por completo. A gaiola tinha uma pequena porta corrediça que com o tombo se abrira, os homens voltariam para buscá-la a qualquer instante, porém desgraçado era o desespero da montanha, porque o pintassilgo não encontrava a saída. Pulava pra lá e pra cá, estranhava os poleiros que estavam então na vertical, pendurava-se nas varetas de cabeça para baixo, porém nada de sair. Enfim, o mais jovem dos homens chegou a tempo de fechar a portinhola, satisfeito por ver o bichinho ainda do lado de dentro, e voltar ao encontro do mais velho. E a cascatinha afinou-se mais ainda, como o choro triste da montanha, perdeu a ansiedade.

(Segue)

Foto de Lou Poulit

A MONTANHA E O PINTASSILGO (CONTO)

A MONTANHA E O PINTASSILGO
(Parte 6)

Naquela manhã não houve o habitual espetáculo de luzes dos coloridos véus da manhã, quando a alma da terra parece fazer vênias à chegada do astro-rei. A montanha cultivava especialmente o seu gosto por esse momento. Na verdade, ela se sentia uma montanha muito solitária, confinada em si mesma. Alimentava em segredo o sonho de, na próxima era, ser posicionada pelas contrações da terra em uma posição que lhe permitisse fazer amigas-montanhas. Tal era esse desejo seu, que em todo alvorecer de céu limpo ela adorava ficar observando as montanhas distantes distinguirem-se bem aos poucos do negrume, e as conferia como se pudessem ter dado uma saidinha furtiva durante a noite. Claro, elas estavam toda manhã nos seus respectivos lugares, mas mesmo assim a montanha gostava de fazer esse seu “confere” particular.

O sol já pairava sobre o horizonte, porém nuvens carrancudas e postas amontoadas pelos ventos, umas sobre as outras, só por uma espécie de concessão deixavam passar um raiozinho de luz, que ficava assim como cachorro-caído-do-caminhão, sem saber para onde ir. Era uma manhã escura demais. Aos seres notívagos, que já davam tratos ao lugar de dormir, restava a lamentosa conclusão de que podiam ter aproveitado mais, enquanto aos que, nos seus lugares quentinhos, esperavam pela luz do dia, a preguiça mostrava-se boa conselheira e muito sedutora.

Com um vôo curvo repentino, tirando proveito magistralmente de uma lufada de brisa, o pintassilgo tirou a montanha das suas reflexões. Esse é o meu velho e bom pintassilgo! ― Disse a si mesma a montanha orgulhosa. Ele pousou suavemente na ponta de um galho mais alto, todavia não se demorou ali. Logo decidiu-se a um vôo mais audacioso, embicando de pedra acima. Quase não conseguiu. E vendo-o depois arfar de cansaço, a montanha passou abruptamente do orgulho à mais uma preocupação: suas asas haviam perdido o vigor de antes, seu organismo já não demonstrava a mesma resistência. Isso significava que ele estava muito vulnerável. Qualquer predadorzinho barrigudo, desde que não fosse muito impaciente, acabaria por comê-lo. Desesperada, a montanha começou a procurar por todos os lados, querendo encontrar qualquer animal que representasse uma ameaça. Precisava encontrá-lo antes que ele visse o frágil passarinho. Nas redondezas haviam algumas raposas, uma pequena família, porém a montanha achou que, apesar de espertas e cheias de truques, elas eram lerdas demais para pegar um pintassilgo. Mais acima, um solitário gato-do-mato acomodara-se na reentrância de um lajedo, de onde, protegido pela relva, tinha uma vista privilegiada para encontrar seu almoço. Com imensos e atentos olhos de um verde azulado muito cristalino, ele ainda não vira o pintassilgo, mas estava perto demais para que a montanha se tranqüilizasse.

Em pouco tempo, ela viu confirmada a sua suspeita. O passarinho irrequieto acabou por despertar a atenção do felino. Não era exatamente o que ele poderia considerar um banquete, porém, apenas para o seu desjejum, até que não era mal lamber aquele coraçãozinho antes de engoli-lo. Era algo para ser mais propriamente degustado e nem tanto para abarrotar a pança. O gato bocejou, espreguiçou-se, e só então se dispôs a caçá-lo, tão certo da sua superioridade que já se imaginava palitando os dentes com a cana daquelas peninhas coloridas. Demorou algum tempo até que, muito sorrateiramente, conseguiu se posicionar para um bote seguro. Os gatos são extremamente pacientes e não gostam de errar o bote, tanto que, quando perdem a primeira tentativa, normalmente não tentam novamente. O pintassilgo havia se colocado em um galho abaixo do nível do terreno onde estava o gato, porque descobrira ali bem perto uma colméia de pequenas abelhas. Esperava a oportunidade de comer algumas delas sem, entretanto, atrair para o seu encalço um pelotão de abelhas furiosas. E de tão compenetrado, não se apercebeu do gato, que já estava bem próximo.

Roendo o sabugo das unhas nas pontas das lajes subterrâneas, a montanha era só desespero, porque o passarinho não dava atenção aos seus esforços de alertá-lo. O bote era iminente, a distância muito pouca e o bichinho nem imaginava o perigo que corria, por causa de umas poucas abelhinhas, tão pequeninas. Mas nessas horas a natureza mostra a sua complexidade. Eis que num arvoredo, próximo e acima dos dois, veio pousar um outro sorrateiro predador. Como não podia saber em quem o gavião estava realmente interessado, o gato estancou o seu bote e pôs-se imóvel, como se fosse uma pedra a mais na paisagem. Sua sensatez instintiva lhe fazia considerar que, embora os pássaros menores sejam destaque no cardápio dos gaviões, levar nas garras para o seu ninho um gato gordinho deveria ser preferível, pois assim regalaria a família toda com menos esforço.

Mesmo para uma montanha, acostumada à grandeza do tempo, aqueles segundos pareciam uma eternidade. Reconhecia que aquela era uma cena muito corriqueira da natureza, onde todos de alguma forma são predadores de uns e predados por outros, e embora seu instinto lhe dissesse que não devia interferir no curso natural das coisas, ela não suportava a idéia de ver o seu querido pintassilgo morto nas garras de outrem. Ora, havia esperado tanto para reencontrá-lo. Tinha agora a pretensão de readaptá-lo à natureza, tarefa longa e morosa. Não. Não e não. Definitivamente, não permitiria que ele fosse comido assim, à toa. Ele não seria mais que um aperitivo para qualquer dos dois, enquanto que para a montanha representava uma satisfação incomparavelmente maior.

(Segue)

Foto de Lou Poulit

A MONTANHA E PINTASSILGO (CONTO)

A MONTANHA E O PINTASSILGO
(Parte 7)

Lendo os pensamentos do gato e do gavião, a montanha deduziu que estava se repetindo ali outro fundamento da natureza: a competitividade. Pois que o gato, que antes havia adotado uma postura cautelosa, ao perceber que o gavião já vinha voando rápido e rasteiro na direção do pintassilgo, resolveu que teria de ser ainda mais rápido do que o gavião e aproveitar-se da distância bem menor a que estava do passarinho. Porém ainda mais rápida foi a montanha. Numa atitude muito condenável para qualquer montanha, no entanto, naquela situação, para ela plenamente justificada, puxou com força para dentro de si as raízes do arvoredo onde estava o pintassilgo. Assim, todos muito assustados, o passarinho levou um tombo, o gato deu um bote no vento e rolou longe, e o gavião por pouco não quebrou a asa no lajedo, ao desviar subitamente o seu rumo.

Algum tempo depois, como sempre acontece na natureza, tudo voltou ao normal e a vida prosseguiu sem grandes traumas. Mas não foi assim para a montanha. Ela havia agredido a natureza com seu ato impulsivo. Cometera uma transgressão. Usara o seu poder indevidamente e sabia que, de alguma forma, um dia pagaria um preço por isso. Até que esse dia chegasse, não obstante a distância física que havia entre elas, saberia que outras montanhas a veriam com outros olhos. Criara para si uma imagem de montanha passional, e ferira o sentimento de identidade das demais montanhas, que por isso não saberiam mais quem ela realmente era, e nela não confiariam mais. Seria pois discriminada e devia se preparar.

Para uma montanha tudo é bem mais demorado do que para um pintassilgo. É como se formassem os dois um grande lago. A tona da água seria como o pintassilgo, sua expressão externa, visível e inconstante, susceptível a uma enorme gama de fatores capazes de provocar grandes transformações em pouquíssimo tempo. Já o fundo do lago, protegido e isolado de tais fatores, onde nem mesmo pode chegar plenamente a luz solar, bem mais se assemelha à montanha. Nele nada é tão breve e tudo é mais verdadeiro e confiável. Muito a propósito, nessa dimensão da vida, não se provocam violações da naturalidade e por isso a montanha sentia-se pejada. Ela sabia que a natureza é sustentada por princípios ativos, que sempre conduzem tudo a bom termo, com base em uma sucessividade também natural, cuja mensuração chama-se tempo cronológico. A aceitação disso como verdade depende, entretanto, de que se tenha a consciência ancorada num nível universal e coletivo. Embora por inusitado e admirável sentimentalismo, ela priorizou as consciências individuais, do pintassilgo e dela própria, e por isso transgrediu. Esqueceu-se de que todas as soluções já fazem parte do todo, que ela própria representa nessa analogia. A supervalorização do nível individual da consciência, ou da sua auto-identidade, não é um comportamento adequado para uma montanha milenar, embora seja muito comum em seres que vivem menos como, por exemplo, os pintassilgos e os humanos.

O sol já ia bastante alto mais uma vez, quando a montanha estranhou o comportamento do seu tão amado amigo. Ele parecia estranhamente movido por uma força difícil de identificar, no entanto muito poderosa. Começou a piar cada vez mais forte e com maior freqüência, sem propriamente cantar, movimentava-se mais, expunha mais as penas à luz do sol e até os seus olhinhos negros pareciam brilhar mais. Impressionada e ao mesmo tempo preocupada com ele, já que assim despertaria mais o instinto dos seus predadores naturais, a montanha pôs-se a investigar mais de perto o que estava acontecendo e em alguns poucos minutos tudo começou a ficar claro.

Subindo lentamente a picada mal definida e íngreme que vinha do vale para a montanha, o mais moço dos dois caçadores, que a montanha já conhecia bem, chegava próximo ao lugar onde estava o pintassilgo. Tratava-se, com absoluta certeza, daquele mesmo que mostrara-se inconformado com a soltura do bichinho. E ele não podia estar bem intencionado, pois trazia consigo novamente uma daquelas gaiolas de caça, providas de rede, e dentro dela três outros pintassilgos, que também não paravam de piar apesar dos trancos e escorregões da subida. Não era para se acreditar que viera soltar mais pintassilgos. Seria bom demais se fosse verdade. Cansado da subida, assim que chegou ao lugar que julgou satisfatório, o homem pendurou a gaiola em um toco de galho quebrado e afastou-se, indo acomodar-se por trás do capim que cobria um pequeno lajedo, de modo a não ser visto.

Por algum tempo a montanha sentiu-se muito feliz. O seu pintassilgo cantava loucamente, como nos velhos tempos. Cantava muito e alto, eriçando as penugens do peito, esticando as pernocas e o pescoço. Parecia à montanha comovida que nunca ele cantara tanto, com tanta eloqüência, tanta emoção. Era como se estivesse cantando pela última vez na vida, reunindo todas as forças para isso, e sua consciência coletiva, entrelaçada à da montanha, o fizesse cantar compulsivamente, como se dissesse ao mundo: Eu sou o pintassilgo e esse é o meu canto, o meu papel nesse mundo e o que sei fazer de melhor!

De tal forma o seu cantar se apossou do ambiente, que todos os demais animais se calaram. Até o vento parecia quedar-se a tão bela e sonora efusividade. Com dois olhos arregalados, o caçador mal acreditava no que eles viam e no que seus ouvidos escutavam.

(Segue)

Páginas

Subscrever Forma

anadolu yakası escort

bursa escort görükle escort bayan

bursa escort görükle escort

güvenilir bahis siteleri canlı bahis siteleri kaçak iddaa siteleri kaçak iddaa kaçak bahis siteleri perabet

görükle escort bursa eskort bayanlar bursa eskort bursa vip escort bursa elit escort escort vip escort alanya escort bayan antalya escort bayan bodrum escort

alanya transfer
alanya transfer
bursa kanalizasyon açma