Nariz

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A TRAPAÇA DO DEDO DURO

CONTO: A TRAPAÇA DO DEDO DURO
AUTOR: LOU POULIT

Do outro lado da prateleira de livros, um rosto. Um belo rosto, de uma bela mulher. Chamava-se Afrodite, mas ele ainda não o sabia. No entanto sabia ser a mesma que procurava sempre, durante o horário de almoço. E para seu contido contentamento, volta-e-meia a encontrava vagando de uma lojinha a outra dentro do shopping. Era de tez trigueira, roliça, mas sem ser gordinha, seios fartos e comportados, gestos calmos e imensos olhos de mel claro, sobre os quais havia sempre uma parte da franja dos seus cuidados cabelos castanhos-escuros e ondulados. Além da estética, mostrava uma característica talvez ainda mais sedutora: Era muito delicada, tal como uma flor.
Sansão ainda não se decidira a abordá-la. Parecia-lhe preciosa demais para que se precipitasse. Difícil reconhecer que não se sentisse muito seguro. Era um homem bem mais velho, cinqüentão, com certeza quase o dobro da idade dela. Sansão era um tipo machista de viúvo-feliz, de bem com a vida, inconfessavelmente rico para as mulheres e meio sovina para os seus funcionários. Barrigudo? Não... Bem, só um pouquinho. Sempre dizia que sua barriguinha era o suficiente para que fosse confortável. Ao seu ver era um charme.
Distraído pela visão da mulher, ao puxar um dos livros derrubou vários outros no chão da livraria. No susto, havia conseguido pegar apenas dois, os demais fizeram uma barulheira danada. Abaixou-se rapidamente, para esconder o seu constrangimento e recolher os volumes, mas ao reerguer-se, com um sorriso talhado no rosto especialmente para ela, já não a encontrou mais do outro lado. Seu olhar desesperado a buscou pela loja, depois pelos corredores, porém em vão. Ela havia sumido. E lhe deixara mal consigo próprio, com uma sensação de perda. Queria ter aproveitado a oportunidade de se desculpar com ela, embora não o houvesse feito com o dono da loja.
Várias semanas se passaram sem que ele a reencontrasse, apesar do esforço que fez para isso. Seu ânimo começara a ceder à idéia de que nunca mais a veria e se culpava por isso. Aos poucos uma tristeza tenaz, e cada vez mais inconformada, ia e vinha, tomando seu coração de assalto e fazendo, à noite, com que demorasse a pegar no sono. Porém, como os homens pensam saber sempre, toda mulher desejável é apenas uma questão de tempo e sempre acabará vindo, eis que, finalmente, a sorte lhe sorriu pela mais simples natureza das coisas.
Sansão estava prestes a voltar para casa. Havia sido mais uma noite infrutífera de peregrinação pelos corredores do shopping. Mas resolveu fazer um lanche antes de sair e assim, sem saber, propiciou que se manifestasse a natureza das coisas. De longe, reconheceu Afrodite vindo para a praça externa de alimentação. Observou que ela procurava uma mesa para si, preferindo ficar protegida pelo toldo. Vendo que atrás dela havia outra mesa vaga, ele apressou o passo para que ninguém chegasse antes. Ela estava de costas, mas Sansão sentia uma enorme felicidade. Ao menos ela estava bem ali, a poucos centímetros. Na verdade era uma situação inusitada, ela nunca estivera ao alcance da sua mão carinhosa. Entretanto, ele dizia a si mesmo que precisava se conter. E ajeitou-se na cadeira para observar melhor aquela mulher que tanto lhe seduzia.
Numa mesa ao lado, dois garotos tomavam refrigerante. Procurando uma forma de criar uma situação em que pudesse abordá-la, ele viu, do lado oposto à sua mesa, que uma senhora idosa e faladeira havia amarrado a correia do seu irrequieto cãozinho à própria cadeira, enquanto comia um sanduíche enorme, para espanto da sua amiga. Sansão sentia o tempo escorrer rapidamente. Tinha que fazer alguma coisa e talvez não dispusesse de muitos minutos. Subitamente teve uma idéia arriscada para um senhor da sua idade, mas ele se decidiu a pô-la em prática. Na primeira oportunidade em que as velhotas olhavam para o lado, ele soltou a correia do cachorro, que saiu em disparada e sem direção. As velhotas não perceberam e Sansão apressou-se em alertá-las.
A dona do cãozinho começou um escândalo desesperado, para que alguém se prontificasse a ajudá-la. Olhava para Sansão, já que a tinha alertado, mas ele se limitava a assistir. Não tinha mesmo a menor intenção de sair do seu lugar, pois esperava o momento para o próximo passo do seu plano. E não demorou. Aproveitando-se da balbúrdia reinante e da oportuna piedade de Afrodite para com a velhota, Sansão trocou o copo de refrigerante de sua pretendida com o de um, já vazio, dos garotos da mesa ao lado. Depois sorriu para si mesmo satisfeito. Fora arriscado, mas havia conseguido realizar a parte mais difícil. Ajeitou-se novamente, com mais conforto em sua cadeira e esperou pelo momento certo.
Com tanta gente apiedada da senhora, o cachorro não conseguiu ir muito longe. Logo um dos guardas do shopping veio trazê-lo, mas na ponta dos dedos, porque o bicho protestava tentando mordê-los. Voltando todos à calma, Afrodite finalmente se deu conta de que o seu refrigerante havia sumido do copo. Como não era mulher de escândalos, matutava olhando em volta, procurando uma resposta para aquele mistério. Quando viu-se vazado pelo olhar desconfiado da mulher, Sansão não teve dúvida e prontamente apontou para o garoto, que ainda tentava entender como o seu refrigerante havia reaparecido dentro do seu copo. Ela a princípio duvidou, mas como os garotos aparentavam seriedade pela surpresa, acabou convencida de que eles haviam feito aquela travessura. Afrodite não tinha filhos mas adorava meninos, porque em sua família só houveram meninas. Sansão sentiu-se decepcionado ao ver que ela não quis ralhar com os garotos, mas achou que era tarde demais para desistir do seu plano. Chamou um dos garçons e pediu dois outros refrigerantes, um para ela, sem que percebesse.
Quando o garçom retornou e Afrodite se mostrou surpresa, Sansão finalmente pode lhe dirigir algumas palavras educadas: Me desculpe, mas não vai terminar o seu sanduíche a seco, vai? Por favor, aceite antes que perca o gelo – disse a ela. E não perdeu a calma quando ela rejeitou sua oferta lhe agradecendo. Ora, por favor... Trata-se apenas uma pequena gentileza. Vamos, aceite de bom grado, veja, também gosto... Afrodite mostrou-se indecisa e ele se aproveitou para sentar-se à mesa com ela, antes que pudesse dizer alguma coisa. Posso? Meu nome é Sansão... Afrodite não respondeu de imediato e ele manteve a pressão sorrindo: Seu nome é algum tipo de segredo?... O meu é Afrodite... Afrodite?! Uma deusa, somos ambos de origem divina...
Só então ela compreendeu que aquilo era uma cantada e, recapitulando o que houvera acontecido ali, desconfiou que talvez fora tudo uma trapaça dele!... Seu primeiro instinto foi o de recusá-lo. Porém, como nunca se precipitava, começou uma vertiginosa avaliação de outros aspectos. O homem mais lhe parecia um tipo de garanhão em fim de carreira e sua reduzida experiência com esse tipo havia sido desastrosa. Se ao menos já se conhecessem seria mais fácil, mas julgava nunca tê-lo visto antes. Sempre dissera que não gostava de homens carecas mas, naquele momento, tentava admitir que ele não era tão careca assim. Também lhe parecia barrigudinho demais, de pouco preparo físico e tônus muscular, entretanto... Bem, mudando o ângulo de visão, ele tinha um rosto forte, fora com certeza um belo rapaz. Testa alta, indício de inteligência. Olhar contundente, mas também algo meigo. Mãos grossas, tivera origem humilde e seria trabalhador. Era um homem grande, talvez um metro e noventa centímetros... Boa perspectiva. Simpático, bem vestido, culto, relógio de ouro autêntico, do tipo que sempre pensa saber de tudo... Por que não? Olhando bem... Era um belo homem!
Ao apagar das luzes, ainda na praça, Sansão insistiu em levá-la para casa e, assim, descobrir onde ela morava. Porém ela decidiu que era a hora de começar a estabelecer limites. Ele não conseguiu convencê-la. Também não conseguiu marcar um encontro no fim de semana, já que ela alegou que iria viajar. Ficou olhando o ônibus se afastar levando embora sua nova deusa. Mas lembrou-se de algo que pusera no bolso. Era um cartão de um escritório de advocacia... Pondo o óculos devassou cada letra dos poucos dizeres que nele havia. Um número de telefone! E de um bairro bem próximo. Eis uma coisa muito importante naquela situação. Aquele número era o único elo, um simples resquício do encontro, mas sentiu-se capaz de jogar fora todos os demais cartões e anotações que tinha consigo. Era o cartão de uma deusa! Sansão não gostava muito de mulheres advogadas, mas adorava as adjuntas. Dizia aos amigos que adjuntas não são advogadas, ainda não têm seus vícios. Pois, deve-se aproveitar, antes que venham a tê-los.
Afrodiiiiiiiiite!!! Não acredito que você vai fazer isso de novo, garota. Você sabe que isso não dá certo. Você já tentou antes, viu no que deu. A não ser que você queira simplesmente dar um golpe do baú!... Diana! Você sabe que não é bem assim... A irmã mais velha pôs as mãos na cintura e olhou para Afrodite erguendo uma das sobrancelhas, hábito que herdara do pai desaparecido. Afrodite se atirou no sofá choramingando, sempre virava uma menininha frágil quando tinha que enfrentar Diana.
Viviam juntas havia há bastante tempo. O pai de Diana fora o primeiro homem de sua mãe, mas nunca ficava muito tempo. Vinha, se instalava, mas em pouco tempo sumia de novo. Num desses retornos encontrou a futura Afrodite ainda na barriga da mãe. Então, esbravejou, xingou e praguejou contra a mulher que, pessoa muito simples e curtida da sua vida sofrida, a tudo suportava. E ainda serviu ao seu homem um verdadeiro repasto de rei, para as parcas disponibilidades da época. Ele comeu como um boi e foi-se embora como um cavalo. Entretanto três anos depois, ficou sem dinheiro e reapareceu, como se nada houvesse acontecido. Sem saber como enfrentá-lo, a mulher acabou concordando em que ficasse até que se arrumasse. No dia seguinte ele já dava as ordens em casa. E na noite de sexta-feira Diana arrastou a pequena Afrodite para sua cama. Hoje você não vai poder dormir com a mamãe – Disse à irmã, que não entendia os gritos abafados e os urros desvairados que se ouviam pela porta entreaberta do quarto.
Ele ficou, dessa vez por quatro anos e inexplicavelmente a vida ficou melhor durante esse tempo. A mãe conseguiu boa freguesia para as suas costuras. O proprietário do apartamento, doente e no fim da vida, desistiu de se aproveitar dela e, por admirar a sua fibra mais do que o seu traseiro, acabou por lhe entregar uma escritura definitiva do apartamento, por uma soma simbólica. Contudo, nem isso foi capaz de conter o instinto inquieto do pai de Diana. Justo quando Afrodite já se afeiçoara, já o tinha como referência de homem, ele saiu para beber no bar e nunca mais voltou. Pois para a bela e doce menina dos olhos de mel, a irmã ocupou esse lugar.
Meu amor... Pare de se fazer de vítima. Você sabe o que a mamãe dizia, “quem gosta de velho é fundo de rede”. Você tem mania de super-heróis. Por que não arranja um mais novinho, Afrodite?... Então, Diana, o Sansão é muito mais bem conservado que aquele grosseirão da banca de jornal. É educado, culto, generoso... É, velho, careca e barrigudo – Completou Diana... Ah, não dona adivinha, barrigudo ele não é não, você nunca viu, como pode saber?... Vai me dizer agora que ele não tem nem um pneuzinho... Ah, um pneuzinho? Tem, mas é fofinho... Depois não venha choramingar no meu colo, não diga que não lhe preveni... Ah, ele é tão grandão e tão gentil. Bem que pode ser o meu super-herói... Não sei, Afrodite. Mas se você gosta, pode ser, otimistamente, o seu homem-borracha... Diana foi para o seu quarto. Oh! – Afrodite fez-se de ofendida – Você é que é a mulher-látex! Do quarto, Diana arremessou o travesseiro, que foi parar na cozinha, e as duas irmãs riram-se uma da outra.
...
As manhãs de sábado eram de faxina geral. Afrodite herdara da mãe o mérito dos temperos, porém, como trabalhava fora, nos fins de semana a cozinha era território só seu, o que incluía a limpeza. Diana lavava, pelo lado de fora, a porta que dava para o corredor, assobiando uma música para dar ritmo ao esforço. Sem conhecer o lugar e com um embrulho generoso de flores nas mãos, Sansão abriu a porta do elevador cuidadosamente. Tinha a esperança de fazer uma surpresa para sua deusa, mas foi surpreendido pela visão do traseiro de Diana, que se curvara para dar brilho no metal da maçaneta.
Ao ouvir o falso pigarreado do homem, Diana voltou-se de um pinote. Ia começar uma espinafração para dissimular o seu constrangimento, porém, vendo aquele homem grande com um sorriso respeitável por trás das flores, conseguiu se conter por alguns segundos, enquanto refletia. O suficiente para ele olhar mais uma vez as anotações em um papel de bloco e tomar a iniciativa da conversa: É aqui que mora a Senhorita Afrodite?... Diana não respondeu de imediato, mas já não tinha dúvida sobre quem era o grandalhão à sua frente. Ele correspondia às descrições, trazia flores e tinha na mão um papel com figuras aguadas de anjinhos, tal e qual o bloquinho de anotações que a irmã usava. Então, deduziu, a danada não lhe contara a estória toda. Já estivera com ele uma outra vez... Pelo menos.
Quando resolveu que lhe daria uma resposta séria, para mostrar que aquilo não era a casa-da-sogra, Afrodite antecipou-se, pelas suas costas, cumprimentando-o com meiguice, sua arma mais fatal: Oi, Sansão... Que lindas, meu anjo!... E logo apresentou sua irmã Diana. Todo derretido pelo sorriso carnudo irrecusável de Afrodite, Sansão quis ser gentil também com a outra, de cuja existência ainda não sabia: Meus Deus, mas que sorte a minha! Trouxe flores para duas deusas belíssimas... Afrodite aceitou a partilha com bom humor, mas Diana preferiu levantar novamente uma das sobrancelhas, mas sem deixar de ser simpática. Afinal, conhecia sua irmã, sabia que ela estava pondo seu plano em prática, e que já era tarde para tentar interrompê-lo. Saiu da frente da porta e ele entrou, puxado pela mão por Afrodite.
O almoço avançou rapidamente. Depois da canja com muitos miúdos, do filé de frango à parmegiana, salada de legumes e arroz branco, a sobremesa foi apresentada com pompas. Afrodite lhe fizera contar qual seu doce predileto, e trouxe para a mesa um enorme pavê de chocolate, que deixou o homem com os olhos arregalados. Depois de satisfeita a sua gula, Sansão não comeria nem mais uma cerejinha, pela mais absoluta falta de espaço. Afrodite sugeriu que se acomodasse no sofá e, descontraídos, foram os três. Suas pálpebras lhe pesavam, porém, cercado por duas deusas que gostavam tanto de vinho, o homem não admitia a idéia de dormir. Deliciava-se observando todos os detalhes. Quando ria, os seios de Afrodite tremiam sedutoramente. Diana, agora completamente à vontade, não tinha o sorriso luminoso da irmã, mas ganhava dela no traseiro imenso. Era bem branquinha e, vez por outra, mostrava belas e pouco comportadas coxas. Passaram a tarde conversando e brincando como três adolescentes. Quando uma saía, para o banheiro ou para a cozinha, ele aproveitava para atiçar o fogo da outra. Entretanto, estava acontecendo algo que ele não percebia naquele momento e não perceberia, até que não soubesse mais o que fazer.
Já à noitinha, Afrodite se fazia algo compenetrada. Sem mostrar sua preocupação, levantou-se e foi à cozinha anunciando que iria preparar um cafezinho bem forte. Mas do fogão, enquanto esperava a água ferver, de vez em quando esticava os olhos para espiar os dois no sofá. Aquela não era uma situação nova. A seu ver, Diana sempre acabava se jogando para cima dos seus namorados. Essa era uma questão antiga, que vinha desde o tempo em que elas eram bem mais novas. À medida em que seus corpos se definiam, a diferença de idade ficava cada vez menos importante. Como, nessa época, Diana era tida como feinha e tinha jeitão de menino, não fazia seu gosto seduzir os garotos como a irmã. Mas depois sempre arrumava um jeito de tentá-los. Depois que os julgava mais confiáveis e mais fáceis de controlar. Isso já dera panos para muitas mangas, algumas escaramuças mais sérias. Parecia tudo esquecido, coisas do passado. Porém, agora Afrodite sentia seu sangue esquentar. As lembranças voltavam a galope. Por isso serviu o cafezinho e arranjou argumentos, para fazer com que ele sentisse que estava na hora de se retirar. E ele se foi, feliz da vida.
...
“Afrodiiiiiiiiite!!! Não acredito que você vai fazer isso de novo, garota...”, não foi assim que você me disse? Agora eu é que lhe digo, Diaaaaaaana!!!... A outra mostrou-se indignada: O que foi que eu fiz, posso saber?... Você sabe muito bem do que eu estou falando, sua sonsa. Não é a primeira vez. Eu vi você beliscando o Sansão bem no sofá, no sábado passado... Euuuuu, Afrodite?!... Sim, você!... Mas foi ele que me beliscou primeiro!... Ahaaa! Eu já imaginava. Eu não vi não, mas tinha quase certeza. Você acabou de admitir que beliscou o meu namorado... Não tendo mais como negar, Diana mudou a estratégia: Ora, mana, foi só uma brincadeirinha... Eu conheço as suas brincadeirinhas há muitos anos... Depois, ele não é bem seu namorado ainda, que eu saiba...
Ela sabia ser aquele um argumento definitivamente decisivo. Por pior que fosse, Diana tinha razão. Afrodite sabia exatamente o que a irmã queria dizer. Enquanto sua relação com Sansão não se consumasse, Diana seria uma concorrente, uma inimiga no ninho. Precisava afastar o homem de casa. Ou não? Bem, pensando melhor, enquanto estivessem os três juntos, fosse onde fosse, seria mais fácil controlar o velho garanhão. Se continuasse saindo a sós com ele, até que ele se decidisse, Diana teria também esse direito. Resolveu então que a melhor maneira de controlar as coisas era as duas fazerem um acordo. Pois já tinha uma proposta para a irmã.
Diana estava sentada na sua cama, remexendo na velha caixa de costuras, que fora de sua mãe, chamada Heralda e tratada por Hera. Aqueles apetrechos, linhas e retalhos, pareciam guardar na caixa muitas lembranças da “Velha” que, entretanto, morrera moça, levando para o túmulo apenas alguns cabelos brancos e um coração que nunca fora realmente amado por homem nenhum. Além da caixa, herdaram o apartamento e as traquitandas que ninguém quisera comprar. Com a venda dos móveis as duas haviam pago as últimas despesas do tratamento e do enterro. Restaram também alguns livros antigos, dentre os quais um velho volume sobre mitologia grega, de cujas ilustrações a Velha ria e se admirava, como se houvesse entendido profundamente o que se esforçava tanto para ler.
Hera trabalhara muito para criar as filhas sem marido. Mas já fora muito sofrida, desde antes, quando adolescente morria de medo do padrasto, e por ele fora inclusive molestada. Ele fora o capataz da fazenda onde Hera nascera. Um homem que sabia se mostrar meigo quando queria, mas que, noutros momentos, era extremamente violento. Diana o odiava, a partir do que Hera lhe contou, e qualquer homem que a fizesse lembrar dele era para ela igualmente odiável. Desde mocinha sentiu vontade de capá-lo à faca, queria ter tido uma oportunidade para fazer isso. Tinha o mesmo desejo em relação aos seus poucos e inocentes namorados, mas nenhum deles ousara o bastante. Não queria sofrer como a mãe, nas mãos de homens bem servidos que, entretanto, não valiam nem a comida que comiam. Já tinha sua própria experiência e achava que havia sido suficiente para saber que os homens são todos iguais. Entregara-se ao último deles por amor sincero, mas não durou muito tempo porque descobriu que teria que dividi-lo, ou pior, capá-lo.
Afrodite interrompeu suas lembranças e a surpreendeu novamente, fazendo uma proposta bastante interessante: Sansão ficaria com aquela a quem ele próprio escolhesse. Mas então – Diana quis esclarecer – quer dizer que você lhe perguntará a quem escolhe?... Não, Diana. Isso aqui não é uma loja comercial oferecendo promoções... Então, como saberemos com certeza?... Afrodite parou para pensar e Diana completou: ganha aquela que primeiro perder com ele a virgindade!... Está louca, Diana? Sabe que você não é virgem... Mas ele não sabe disso... Mas ele não vai perceber?... Digo que meu hímen é complacente... Não! Sua trapaceira! Como você poderia saber disso antes de ter uma experiência?... Digo que fui molestada pelo meu ginecologista... Mas que coisa sórdida! Que lembrança mais infeliz... Qual o problema? – No caso da mamãe não foi um médico educado e nem de mãos limpinhas. Depois, ele ficará com peninha de mim, Afrodite, até terá um sentimento de proteção, muitas mulheres tiram partido disso... Não era você que não suportava mentiras?... Afrodite, ele não sabe de nada e você não vai bancar a dedo-duro dessa vez... Eu? Dedo-duro, Diana?... Você mesma, sempre me delatou desde criança... Mas que mentirosa... Você sabe muito bem, Afrodite. É apenas para efeito desse nosso trato. Ah sim, outra coisa, isso terá que acontecer aqui em casa, noutro lugar não vale. Deixemos que ele faça a escolha livremente. Combinado?
Não era bem esse o acordo que Afrodite imaginara, contudo, pelo menos agora havia um acordo. Sentia-se em desvantagem. Caso Diana o convencesse de que é virgem, isso poderia pesar na sua decisão a favor dela. Os homens dão muito valor a isso. Afrodite vinha evitando encontrar-se com Sansão desde o último sábado. Achava agora que ele era tão sem-vergonha quanto Diana, porém queria primeiro acertar as coisas com ela, torná-la mais previsível, para depois poder ficar com ele. Bem, já no dia seguinte ao do acordo, foi encontrá-lo no shopping durante o horário de almoço. Entretanto, ele não estava lá. Começou então a telefonar, mas a ligação caía na secretária eletrônica. Será que estava com Diana? Telefonou para casa, Diana atendeu e disse que não... De jeito nenhum... E agora? Precisava voltar para o trabalho – Afrodite sentiu um princípio de desespero. Esforçou-se para controlar a agonia. A tarde passou muito lentamente e assim que pode ela se despencou para casa. Ao chegar tentou agir normalmente, porém prestando atenção em cada detalhe, na expectativa de encontrar algum indício de que ele estivera ali durante o dia. Mais tarde estava aliviada, porque não havia visto nada de diferente. Contudo, estranhava o bom humor da irmã, algo exagerado.
Nos dias que se seguiram tudo se repetiu. Não o encontrava, não conseguia fazer contato e nem descobria nenhum indício em casa, a não ser Diana, que dera para assobiar mais que de costume. Ele havia sumido sem dar uma palavra e isso era o mesmo que futucar uma ferida antiga. Trazia a lembrança do sofrimento de sua mãe. Então queria perguntar à Diana por que isso não a incomodava. Ao contrário, parecia mais feliz. Mas sempre deixava essa pergunta para depois. Preferia absorver o acréscimo de agonia que vinha a cada dia. Na sexta-feira de manhã, enquanto Diana foi se banhar, ela sentiu uma vontade quase incontrolável de fuçar as coisas da irmã. Mas demorou a se decidir, depois achou que não daria mais tempo e acabaria chegando atrasada no trabalho. À noitinha, já voltando para casa, era só desânimo. Nem se alimentou direito e foi dormir cedo, com o coração pesado demais. Porém, não chegou a entrar em estado de sono profundo. Foi despertada pelos gritos desesperados de Diana, que vinham sufocados pela porta fechada do banheiro: Afrodiiiiite!!!... Ai! Afrodiiiiite!!! A tocha!!!... Afrodiiiiiiiiiiite, me acuuuuuda!!!... A tocha!!!...
Muito à contra-gosto, por Diana ter interrompido seu sono tão difícil de conseguir naquela noite, Afrodite foi se arrastando para o banheiro. Já sabia do que se tratava. A válvula do aquecedor de gás estava com defeito havia algum tempo. Por duas vezes o faxineiro do prédio já viera consertá-la. Levava algum dinheiro, mas o problema reaparecia, o gás vazava e fazia um fogaréu. Bastava fechar o registro na parede e esperar um pouco, mas tomada de pavor, Diana não era capaz de fazê-lo. Afrodite fechou o registro e voltou para a cama resmungando. E agora, Afrodite, vou ter que me enxaguar com água fria?... Da cama ela respondeu: É bom, Diana. De vez em quando é bom pra lhe aliviar do seu próprio fogo...
Quando Diana voltava para o seu próprio quarto parou na porta do quarto de Afrodite. Mas ela fingiu que já estava dormindo novamente. Era noite de sexta-feira, porém não tinha ânimo nenhum. Pensou que naquele instante o shopping e os bares deviam estar borbulhando de gente se divertindo. Mas seu coração estava triste demais. Se resolvesse se vestir e sair? Talvez encontrasse Sansão em algum lugar. Mas, o que faria então? Não... Não era uma boa idéia. Isso podia por tudo a perder de vez. Esforçava-se para ouvir os ruídos que Diana fazia no seu quarto, e deduziu que ela se preparava para passar creme no corpo. Imaginou então a irmã fazendo isso, mas com o pensamento em Sansão. Afrodite sentiu um tremor de raiva lhe percorrer o próprio corpo e enfiou a cara no travesseiro. Queria dormir e rápido. Precisava afastar esses pensamentos da mente. De súbito algo lhe sacudiu o coração: E se Diana contasse a ele sobre o trato que haviam feito? Não se considerava mais delatora do que a irmã. Remexendo a memória, achava que eram duas delatoras quando alguma competição o justificava. Dedo-duro? Eu que sou a dedo-duro? Pois sim, a mim ela não engana – Afrodite adormeceu inquieta.
...
“Afrodiiiiiiiiite!!!... Venha ver quem está aqui!... Afrodite chegou às pressas, para confirmar a intuição que havia desprezado desde que se levantara da cama. Lá estava novamente aquele sorriso por trás do embrulho de flores, embora dessa vez nem tantas. Mas eis que, enquanto trocavam olhares, Diana se antecipou e trouxe Sansão para dentro pegando-o pela mão. Nesse momento, Afrodite se convenceu definitivamente de que seus planos estavam sob sério risco. Precisava dissimular que se sentia roxa de ciúme. Lembrou-se então de que naquele sábado tinha o compromisso de ir ao escritório, para fazer a pró-forma de um contrato importante para a empresa, de modo que estivesse nas mãos do cliente na segunda-feira antes do almoço. Mas qual, essa devia ser a razão dos constantes assovios de Diana. Ela devia saber que teria várias horas a sós com ele.
Afrodite precisou fazer um esforço muito grande, mas conseguiu se controlar. Preparou um cafezinho, e começou uma conversa descontraída. Para diverti-lo, contou a estória do defeito na válvula de gás e do desespero da irmã. Entretanto o tempo era mesmo curto. Deixou o almoço adiantado e foi para o escritório, mas não sem antes exigir dele a promessa de que esperaria por ela. Ao passar pela porta, olhou para a irmã com seriedade, e percebeu que ela dissimulava um sorriso sarcástico de quem dizia: Não tenho culpa... Diana não quis perder nem um minuto. Pela janela deu um até-loguinho para Afrodite e, assim que ela virou a esquina, foi logo sentando no sofá ao lado dele, ou melhor, quase no seu colo. De short curto e blusa de malha, podia perceber que Sansão seria facilmente seduzido. Alguns minutos depois já estava sentada de fato no seu colo. Porém, achando que ele estava menos ousado do que devia, Diana alegou que a janela da sala estava aberta e o levou para o quarto. Então o homem pôs de lado a timidez e começou a despi-la, e ela a ele. Já deitados na cama, Sansão sentiu seu próprio sangue se multiplicar. Diana era uma mulher bela, apesar de não ter a simpatia da irmã. Ele admirou seu corpo por alguns instantes, sua pele muito clara, e viu que alguns músculos tremiam involuntariamente. Ela era um poço de desejo. Mas quando ele começou seus carinhos o telefone tocou. Diana não queria atender, pensava ser uma trapaça da irmã, mas Sansão, que não desconfiava, insistiu. Argumentou que podia ser algo sério e que eles tinham bastante tempo.
De má vontade Diana foi à sala atender. Depois voltou furiosa, dizendo que se tratava de um homem desconhecido, perguntando se aquele telefone era do açougue. Sansão desfez a zanga dela com alguns toques certeiros e ela correspondeu. Os minutos passavam rápidos para ela, mas ele não demonstrava nenhuma pressa. Seus carinhos vinham e voltavam aos mesmos lugares, mudava e tornava a mudar a posição dela, porém nada além de carinhos. Diana então achou que ele não podia continuar no comando, e passou a tomar a iniciativa. Porém, no instante em que ia consumar sua conquista postando-se sobre ele, ouviram o som da campainha. Algum miserável estava na porta - disse ela a si mesma, fingindo não ter escutado. De novo a campainha tocou e Sansão perguntou se ela queria que fosse atender. Diana estava a ponto de explodir de raiva, mas controlou-se para não tornar as coisas ainda mais difíceis. Levantou-se, tirou do armário um quimono atoalhado e foi para a sala, abrindo a porta abruptamente e fazendo cara de poucos amigos.
Da cama, onde permanecera, Sansão ouviu Diana dizer que ele voltasse noutro dia, que não poderia consertar coisa nenhuma naquele dia. Era um funcionário e tentava explicar a ela que haviam pedido o conserto, telefonando para a empresa que o contratara. Se o serviço não fosse feito naquele dia, então quem pagaria a sua diária? Ela entrou no quarto bufando, pegou sua bolsa e dela retirou dinheiro suficiente para despachar o “senhor consertador do gás”, mas Sansão interferiu de novo. Para convencê-la, alegou que o problema do gás era muito perigoso e que o conserto sairia mais caro do que comprar outro aquecedor. Calma, temos tempo... – repetiu ele para desespero dela.
Duas horas depois, justificando-se pela pressão que ela fez para que fosse mais rápido, o homem deu o serviço por terminado, tendo feito uma limpeza geral e trocado a válvula defeituosa por outra já usada, mas que, como podia ver, funcionava perfeitamente. Diana sentiu que aquela não era uma boa solução, mas tinha outra prioridade no momento e tratou de se livrar do inoportuno. Quando o homem foi-se embora ela olhou para Sansão, sentado no sofá esfregando com a mão a própria barriga, e deduziu o óbvio. Ele estava com fome, ela teria que servir o almoço e deixar a sua prioridade para depois. Ela ainda perguntou para confirmar se havia entendido bem o gesto, numa tentativa de protelar. No entanto Sansão confirmou que já estava sentindo fome, e mais uma vez lhe disse que tinham muito tempo, “só tenho pressa para o que não gosto de fazer...”. Diana respirou profundamente e foi para a cozinha, tentando manter um bom ânimo para não demonstrar a sua raiva.
Ela tentou fazer com que Sansão terminasse rapidamente a sua refeição, porém ele não teve pressa para isso também. Comeu e repetiu, elogiando os dotes de cozinheira de Afrodite. Nesse dia não havia pavê de chocolate para a sobremesa, porém havia metade de um melão na geladeira e, como ele disse que adorava melões, Diana não conseguiu tirar o fruto do cardápio. Sansão comeu toda a metade do melão sozinho. Diana olhava para o homem empanzinado de tanto comer e para o relógio, que ficava sobre a prateleira da sala. Ele lhe parecia uma criança. Para um homem da sua idade comia demais. Quando Sansão finalmente terminou, ela tratou de aconselhar que se deitasse um pouco, na cama, que seria mais confortável. Ele aceitou e ela voltou à carga, tomando novamente a iniciativa dos carinhos. Porém, bastou que ela fosse ao banheiro por alguns poucos minutos, para que Sansão pegasse num sono profundo. Meia hora depois, sentada na cama ao lado dele, ela se perguntava onde havia errado, e ele roncava sem nenhuma cerimônia.
Quando, mais tarde, Diana tomou coragem e decidiu acordá-lo, antes que fosse tarde demais, o telefone tocou novamente. Ela alegrou-se por ele ter despertado, mas logo perdeu a esperança. Era Afrodite, avisando que já estava voltando, mais cedo do que imaginara. Normalmente, ela levaria vinte minutos no trajeto entre o escritório e o apartamento, mas Diana sabia que, naquela situação, chegaria bem antes. Talvez já estivesse dobrando a esquina. Desanimada, ela disse que Afrodite já estava chegando e Sansão pediu para tomar uma chuveirada bem rápida, só para tirar a lombeira.
Quando Afrodite chegou usou a sua chave para abrir a porta, contudo encontrou os dois fazendo um lanche à mesa. Com algumas poucas trocas de olhares desconfiou e, pela receptividade dele convenceu-se, de que o pior não havia acontecido. Que alívio! Sentiu-se tão feliz que se jogou nos braços dele como nunca fizera antes. Depois tentou se recompor, mas não evitou a raiva da irmã, que dirigiu-se ao banho sem conseguir dissimulá-la. Afrodite disse a Sansão que não se preocupasse, que ela era assim mesmo e que depois de um bom banho voltaria ao normal. E foram os dois trocar afagos no sofá. Porém, embora pudessem ouvir o som do chuveiro, pelo buraco da fechadura Diana os observava. Quando percebeu que ele já acariciava o seio de Afrodite, não pensou duas vezes. Tratou de terminar o falso banho e saiu de repente do banheiro para o seu quarto, enrolada na toalha, para provocar a irmã. Como resposta, Afrodite convenceu Sansão a ir com ela fazer um passeio no shopping. Ele perguntou à Diana se ela não gostaria de ir também, mas dessa vez foi Afrodite quem se antecipou, dizendo que ela nunca ia ao shopping e não haveria de resolver ir justamente quando estava chuviscando, “não é mesmo, mana?”. Ao saírem na calçada, Sansão olhou para o céu da noitinha, em que já despontavam as primeiras estrelas, e perguntou a ela pela chuva. Quando saí do escritório estava caindo um chuvisco, explicou ela. Ele olhou então para o chão, completamente seco e sem poças, mas preferiu não perguntar mais nada. Afinal, que diferença fazia?
Em casa, deitada na cama, Diana roia as unhas. Trapaceira que você é, Afrodite... – dizia consigo – Primeiro arrumou alguém para ligar perguntando por outro número, e logo pelo número do açougue! Depois telefonou para pedir o conserto do aquecedor... Com certeza escolheu a empresa mais trambiqueira da lista. Ah, maninha, você me paga... Mas no shopping ela não poderá conseguir nada, o trato é que tudo se decida aqui no apartamento. Depois, ele só virá novamente no próximo sábado... Bem, agora quem tem tempo sou eu. Terei uma semana para estudar isso com muita calma.
Na praça de patinação, enquanto se divertiam com os tombos dos que se arriscavam, Sansão perguntou se ela havia ligado durante o tempo em que esteve no escritório. Afrodite explicou que estavam fazendo uma nova instalação e todo o prédio estava sem sinal telefônico. Portanto, por mais que precisasse não poderia telefonar. Mas não ligou para pedir o conserto do aquecedor? – Insistiu ele. Não, Sansão. Quando saí, perguntei na portaria pelo faxineiro, que costuma fazer esse serviço. O porteiro disse que ele havia sido demitido, mas que procuraria o número de uma firma, que já havia feito isso em alguns apartamentos. Só que ele poderia demorar um pouco a chamar, porque há alguns anos não ligava para essa firma e não sabia de cabeça onde estava o caderno antigo de telefones. Mas por que essa pergunta sua?... Por nada, aliás foi muito bom. Mandaram alguém lá consertar. Precisava mesmo, esse tipo de problema é muito perigoso... Afrodite, apenas balançou a cabeça, mas já ficou imaginando como estava a cabeça de Diana.
...
Afrodite chegou do escritório bem mais cedo do que de costume. Havia almoçado junto com todos os funcionários no pequeno restaurante que ficava no andar térreo do mesmo prédio. Comemorava-se o aniversário do dono do chefe, um velho e bem sucedido advogado, e seu filho, também dito homem das leis, criou o evento porque viu nele uma boa oportunidade para, mais uma vez, tentar convencer Afrodite a ser mais que uma simples secretária. Porém ela, além de já tê-lo recusado inúmeras vezes, por pura intuição só pensava no momento de voltar para casa. Para não fazer desfeita, foi e almoçou, mas muito rapidamente. Ela sabia que o velho não gostava muito dessas ocasiões e não se demoraria a ir embora. Pois logo depois que ele passou pela porta, de saída, foi ela a se despedir de todos. Para desespero do seu preclaro admirador.
Entrou no apartamento, como vinha fazendo, em silêncio, usando a própria chave. Entretanto, para sua surpresa, estava vazio. Foi ao quarto da irmã e logo deduziu que ela havia saído. A julgar pelos cabides que ficaram vazios no guarda-roupa, fora bem vestida. Um resto do perfume ainda estava pelo ar, retido pela janela fechada, e o sapato de salto novo não estava na caixa. Já convencida de que eles haviam saído, Afrodite teve vontade de gritar, o que não era do seu temperamento. Sentia que aquele homem era realmente importante. A expectativa de perdê-lo lhe parecia algo terrível, e a de ter que conviver com os dois debaixo do seu nariz era ainda muito pior. Sempre dizia que sua intuição nunca falhara.
Tomou um banho morno e demorado para tentar relaxar. Vestiu uma camisola fina e confortável, e foi para a cozinha. De tanta ansiedade quase esvaziou a geladeira, fazendo um lanche que seria capaz de saciar até mesmo a Sansão. Pensava que sua irmã, por vezes, parecia ter razão em coisas absurdas. No caso, Afrodite remexia na faca de pão e se lembrava da fixação da outra por capar alguém. Começou a achar que alguns homens bem que podiam merecer mesmo. Ainda estava à mesa quando a porta abriu e por ela passaram os dois. O primeiro impulso de Afrodite foi explodir com Sansão. Mas vendo que Diana passou emburrada para o seu quarto, sem dar nem ao menos um “boa tarde”, preferiu esperar um pouco. Vendo-a com cara de açougueiro, passando o polegar no fio da faca, embora estranhando Sansão veio todo dengoso.
Em tom baixo ela exigiu umas respostas, antes de qualquer outra coisa. E ele prontamente começou a descrever a própria versão do que havia acontecido. Não, Diana não havia telefonado. Ele sim, para deixar o recado de que teria de viajar novamente no fim-de-semana, porque ninguém atendia no telefone do escritório. Então Diana lhe dissera que dava o recado, mas que queria conversar e marcou um encontro no shopping. Foi só isso, meu amor... Afrodite olhava dentro dos olhos de Sansão, fazendo expressão de quem não acreditava muito. E do shopping, vocês foram para onde?... Lugar nenhum, minha deusa... Sansão... – Ela remendou mostrando sua impaciência... Ora, só fomos assistir o filminho do dinossauro pra passar o tempo. Mas por que está achando que fizemos alguma coisa de mais?... Porque você não tem vergonha nessa cara... Euuu? ... – Sansão levantou-se da cadeira, surpreso com a atitude dela, fazendo-se de vítima... Porém, olhando para a calça que ele vestia, ela completou vitoriosa:... E porque sua braguilha está manchada... Sansão, que dinossauro mais guloso esse!!!
Enquanto ele pensava numa saída para aquela situação, Diana passou do quarto para o banheiro, ainda dando os bofes para ele. Não abre demais o gás! – Disse Afrodite assim que a irmã fechou a porta. Sansão começou a contar o que certamente seria uma mentira deslavada, mas Afrodite achou que já estava tudo bastante claro. Pegou o homem pela mão e praticamente o arrastou para o seu quarto. Empurrou o seu corpo imenso para que caísse de costas na cama e começou a soltar o cinto. Novamente surpreso, ele ia argumentando alguma coisa, porém ela lhe disse que calasse a boca, com o tom de uma ordem, e prosseguiu a despi-lo sem cerimônias. O homem não estava acostumado àquilo, era para ele inusitado, porém... Pensando bem, por que não? Afinal de contas, não era o que vinha desejando havia tanto tempo? Muitas vezes imaginara uma viagem bastante semelhante, com a diferença de que ele estava na poltrona do piloto.
Diana nem se dava conta da água que deslizava abundante e quente pelo seu corpo, ainda trêmulo, mas agora pela raiva que ela sentia. Como Afrodite pudera adivinhar o dia e a hora com exatidão? E por que Sansão se demorara tanto a decidir trazê-la de volta? Quis ver a porcaria daquele filme até o final, a ponto de urinar nas próprias calças, antes de chegar ao mictório do cinema! Ele adorou saber seu segredo mais precioso, de que era virgem, porém nem assim quis sair até que passasse a última cena. Ela precisava pensar em alguma coisa rapidamente. Cada minuto era uma perda enorme de tempo. Mas, sob tensão, nada lhe ocorria que pudesse fazer.
Na cama, Sansão parecia estar no paraíso. Afrodite era mesmo uma mulher e tanto, uma deusa da beleza e da sensualidade. Suas formas eram esculturais, sua pele deliciosa e cheirosa, seus gemidos e sussurros bem medidos arrancavam das cavernas da sua ancestralidade um indomável instinto de animal macho. Ele só raciocinava o suficiente para retardar a consumação. Queria que fosse o melhor de todos, o mais belo himeneu desde a Grécia antiga. Entretanto, para Afrodite, nada disso era necessário. Bastava sair-se vencedora, depois disso ele poderia entrar do jeito que bem entendesse. De tudo ela fazia para que, na iminência de um orgasmo, ele se apressasse a enfim fazê-la mulher e feliz. Contudo Sansão era um homem experiente. Se o hímen tivesse um limite de tolerância matematicamente calculável, ele saberia fazer essa conta com a mais absoluta precisão.
Diana diminuiu a vazão do chuveiro, enrolou-se na toalha e abriu a porta do banheiro cuidadosamente. A porta do quanto de Afrodite estava fechada e Diana não resistiu à tentação de olhar pelo buraco da fechadura. Não dava para ver muito, mas aquele traseiro branco e grande se remexendo só poderia ser do Sansão! Então a sua intuição estava certa, Afrodite estava jogando duro, uma cartada decisiva. Diana entendeu que: ou fazia alguma coisa em pouquíssimo tempo, ou não adiantaria mais. Entretanto, fazer o que? Sua irmã estava rigorosamente dentro do trato. Diana buscava uma forma de interromper a brincadeira daqueles dois sem quebrar o acordo que haviam feito. Além disso, tinha torcer para que o homem fosse tão controlado com ela quanto fora consigo.
No ninho das suas delícias Sansão mantinha o controle. Porém isso também se devia a certo escrúpulo por parte dela. Durante aqueles minutos de idílio, apesar do grito preso na garganta, Afrodite se recusara duas vezes a por em prática uma idéia ousada. O homem que, bem maior e mais forte, sobre e entre as coxas dela julgava ter absoluto domínio da situação, sequer imaginava o que passava naquela cabecinha. Como os homens sempre acham, a mulher era uma simples coadjuvante e apenas ele tinha o poder de decidir o momento da consumação, conforme melhor aprouvesse. Afrodite gemia, pedia, implorava, porém ele só ia até o limite. Então recuava e dizia a ela que tivesse calma, ponderava que esperasse um pouco mais, que ainda não era o momento. Apesar de estar quase enlouquecendo, ela esperou estrategicamente e logo ele voltou a pressionar. Foi no exato momento em que se ouviu um pequeno estrondo e em seguida os gritos sufocados de Diana: A toooocha!!!... A tooocha!!!...
Assustado, Sansão levantou a cabeça, olhando na direção da porta. Fez menção de se levantar, porém Afrodite havia trançado as pernas nas suas costas. Lá do banheiro Diana pedia socorro e gritava: A toooocha!... Enquanto, agarrada ao corpo dele, Afrodite lhe implorava: Atoooocha, meu amor... Bem, ao menos por bom-senso, devemos admitir que mesmo um homem experiente, tem o direito de parar para refletir. Pois no caso, antes não o tivesse. Foi justamente nesse exíguo instante de reflexão, que Afrodite cedeu à idéia que lhe perseguia os escrúpulos. Sabia que aquela gritaria era mais uma trapaça de Diana. Pois haveria de ser a última. Sentindo-se na iminência de perder sua melhor chance, de um só golpe, certeiro e contundente, enfiou o dedo médio no traseiro do amante que, no susto, rompeu afinal o limite... Que isso, mulher? Ficou maluca?... Ah, meu amor, você conseguiu, estou tendo um orgasmo orgulhosa de você... – Ela mentiu com um sussurro suplicante... E como os homens sempre pensam saber que têm a verdade nas mãos, e também noutras partes, e que isso lhes dá poder sobre o certo e o errado, ele cedeu cavalheirescamente: Então atoooocha!...

Foto de Elias Dall Agnol

Pré-Conceitos

Vejo, por entre as frestas, seres abaulados por toneladas de pré-conceitos, estes mesmos, poluem a mente humana falseando a realidade nua e crua disposta diante dos olhos.
Muitos entorpecem-se com diversas regras e normas que existem apenas com este mesmo intuito, impedir que se viva a vida da maneira que deve-se viver, ficam tão alucinados cumprindo protocolos inúteis e fúteis que tudo acaba se tornando um calvário doloroso. Entendo perfeitamente porque inúmeras pessoas são arrancadas do nosso meio pelas garras do suicídio, é claro, é óbvio e é lógico. Se tudo é feito para estar em evidência, se tudo gira em torno de status e suposto sucesso, é lógico que tudo se torna um árduo sacrifício, até mesmo as amizades, os relacionamentos, a profissão, etc... tendem a ser apenas para “manter aparência” e não para dar prazer, o que é lastimável. Vivamos agora a vida que se tem que viver, curtam seus filhos pequeninos crescendo aos poucos debaixo do seu nariz, não deixe para curti-los quando estes estiverem adultos pois aí eles terão outras coisas a curtir. Curtam o romance que se aponta ao conhecer uma pessoa interessante, viva isto intensamente, dê flores, passeie, viaje, viva. Curta o seu Clube sendo campeão ou mesmo sendo derrotado mas curta a emoção de torcer por um Clube porque é para isso que eles existem, para que você sinta, se emocione, chore, sorria, etc... Emoções... Se não fossemos feitos dela, Jesus teria vindo, ditado uns 100 ou 200 procedimentos e todos seríamos felizes, mas não é assim, até a fé é emoção. Precisamos dela, precisamos senti-la, dizem, hoje em dia, que o stress é a doença do século e é mesmo, pois a cada dia que passa somos obrigados a nos submeter a situações das quais nós não queremos, não gostamos ou não suportamos passar. Este é o prazer da vida, deixar a sua emoção falar também, nem mais nem menos do que a razão, só não podemos silenciar esta voz gritante que emana do fundo da nossa alma, não podemos ignorar seu grito porque aí sim estamos ignorando nossa própria existência na terra e nos tornando máquinas de carne e osso, não pensando, não arbitrando as nossas vidas e sim, apenas cumprindo o programado, não por Deus, mas pela sociedade mecânica que nos rodeia. Liberte-se, eu já dei o primeiro passo, você vem comigo ?????

Foto de Civana

Ao Meu Filhote

Você chegou tão tranqüilo
Suas mãos tão frágeis
Seu nariz arrebitado
Seus pés delicados
Sua boca perfeita
Seus olhos...iluminados!
O médico disse para não me preocupar,
você seria enorme. (Exagerado!)
Mas agora vejo que ele viu sua alma,
meu "Pequeno Grande Homem"!

(Civana)

Foto de Paulo Gondim

As Águas do Rio São Francisco no Sertão

As águas do Rio São Francisco no Sertão (Cordel)
Paulo Gondim
05/05/2005

Quando o assunto é Nordeste
É só discriminação
Muita gente torce a cara
Com medo da solução
Para o problema da seca
Querendo que prevaleça
Na mesma situação

É assim há muito tempo
Mas já foi bem diferente
O Nordeste já foi rico
Produzindo imensamente
Cana-de-açúcar, cacau
Ouro, prata e muito sal
Riquezas de nossa gente

Há gente que desconhece
A nossa história real
Despreza nossos costumes
E só sabe falar mal
Acho até que nunca ouviu
Que Salvador, do Brasil,
Foi a primeira Capital.
1

Houve até uma proposta
Pro Brasil ser dividido
Do Sul, com sua arrogância
“Feito menino enxerido”
Querendo toda riqueza
Sem se importar com a pobreza
Desse povo tão sofrido

É isso que envergonha
Ser chamado de indigente
Mas é preciso mudar
A cabeça dessa gente
Pois se há uma só terra
Pra que fazer tanta guerra
E querer ser diferente ?

Mas o sertanejo sonha
Com a vida diferente
Se houver água na terra
Nada há que não enfrente
Quer ver seu filho crescer
E poder permanecer
No meio de sua gente
2

Voltemos ao nosso tema
A velha seca de sempre
Um problema do Nordeste
O ganho de muita gente
Por isso que nunca muda
Nessa roleta absurda
Remando contra a corrente

Trazer água pro Nordeste
Sempre foi uma questão
De tão difícil deslinde
E de muita oposição
Se há água em tantos rios
Eis os grandes desafios
Pra irrigar o sertão

Já queria Dom João Sexto
Fazer a transposição
Das águas do São Francisco
Para irrigar o sertão
Mas falta boa vontade
Política de qualidade
Pra resolver a questão
3

Sempre há uma desculpa
Pra seca ser combatida
A vazão do São Francisco
Não pode ser transferida
Pois fere o meio ambiente
Mesmo que toda essa gente
Continue desassistida

É coisa de “ECO CHATO”
Que não sabe o que é sofrer
Pois tem comida na mesa
E água para beber
Sem saber de onde vem
Acha só que ele tem
O direito de viver

É só conversa fiada
De falso intelectual
Quero ver quem é que diz
Fale bem ou fale mal
Que água aqui no Sertão
Pra molhar nosso torrão
Causa impacto ambiental
4

O nosso problema é água
E o São Francisco tem
Qualquer coisa a gente busca
No Tocantins, mais além
Ou até no Araguaia
De onde quer que a água saia
É pra aqui que ela vem

Nossa questão é de clima
Da Bahia ao Ceará
Não é região de chuva
Nunca foi e nem será
Mas temos lençol freático
Um bom subsolo aquático
Mas é preciso cavar

Pra resolver o problema
Da seca no meu sertão
Qualquer esforço é pequeno
Mas falta disposição
De fazer poço ou açude
Até que a política mude
Pra prender tanto ladrão
5

Se na indústria da seca
Muita gente se dá bem
Por outro lado o caboclo
Não ganha e perde o que tem
Nossa política é corrupta
Nela vale a força bruta
Sem ter pena de ninguém

Os poderosos não querem
Com a seca exterminar
Para eles ela é boa
Para o pequeno explorar
A seca é um bom negócio
Pra quem só vive do ócio
Sem precisar trabalhar

A questão é bem mais séria
É de ordem social
Água aqui no meu Nordeste
É ponto fundamental
Pra combater a pobreza
Para aflorar a beleza
Dessa gente tão leal
6

A seca sempre foi um tema
Pra se ganhar eleição
É grande a compra de votos
Afora nesse sertão
E o coitado do caboclo
Por um dinheiro tão pouco
Vota a mando do patrão

E a desculpa continua
Pra água não vir pra cá
Um “ecologista” aqui
Outro “estudioso” lá
Sempre com um mau palpite
Pra que a gente acredite
Que jeito mesmo não há

Mas o jeito aqui é água
Seja do rio ou do mar
Já que com água da chuva
Nunca se pode contar
Se num ano a falta faz
Em outro ano é demais
O jeito mesmo é irrigar
7
Já passou pelo governo
Muito doutor presidente
Poliglota, professor
Se dizendo inteligente
Disse ter a solução
Pra combater o verão
Mas nada fez novamente

É assim há muitos anos
Só promessa, só engano
O rico fica mais rico
E o pobre no desengano
Com a indústria da seca
Onde há água, tem cerca
Onde tem cerca, tem dono

Foi preciso no governo
Um presidente “peão”
Nascido aqui no Nordeste
Que muito dormiu no chão
Mas com coragem e bravura
Sem temor e sem frescura
Retomou essa questão
8

Assunto tão delicado
Essa tal transposição
Das águas do Velho Chico
Aqui pro nosso sertão
Tem que ter coragem rara
Muita vergonha na cara
Pra tomar a decisão

Mas o Presidente disse:
-“Recurso não vai faltar
As águas do São Francisco
Vão o Nordeste irrigar
Eu assumo o compromisso
Nem que tenha para isso
Na cabeça carregar”

O projeto foi mostrado
Em toda televisão
Logo despertou a ira
De toda oposição
Que não quer a melhoria
“Esses tais da ecologia”
“Eco chatos” de plantão
9

Mas o caboclo responde:
-Tenha a santa paciência
Não me venha com a excrescência
Dessa “tal ecologia”
Aqui, nós queremos água
Pra lavar a nossa cara
Pra encher pote e bacia

Está certo o Presidente
E o caboclo também
Errados são esses chatos
Que nem sei de onde vêm
Com tal conversa fiada
Se a água for desviada
Não servirá a ninguém

Também acho que é preciso
Proteger o natural
Mas é muito ecologista
Morador da Capital
Dando palpite infeliz
Metendo em tudo o nariz
Em nome do ambiental
10

Tudo isso tá errado
Povo em primeiro lugar
Não é por causa de um sapo
Que a água não vai passar
Pra irrigar o sertão
Pra ter muita produção
Até pro sapo cantar

Por isso que esse projeto
Deve sair do papel
Bote força, Presidente
Nós cremos no seu plantel
Traga água pro Nordeste
Mostre que é “cabra da peste”
Pro senhor, “tiro o chapéu”

Pra tocar esse projeto
Vai ter muita resistência
Vai ter muito oportunista
Com muita experiência
Com a cara e a coragem
Vai querer levar vantagem
Pousando de inocência
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Vai ter muita gritaria
De Minas a Sobradinho
De tudo que é “eco chato”
De tudo que é ribeirinho
Com a velha posição
Ser contra a transposição
Que já está a caminho

Já tem morador da roça
Onde a água vai passar
Que pergunta presunçoso
Quem vai me indenizar ?
Mas na sua ignorância
Já desperta a ganância
De algum dinheiro arrancar

Por isso que há tanto tempo
Isso foi adormecido
De propósito ou intenção
Pra não causar alarido
Pois se um quer, outro não quer
Ou por bem ou por má-fé
Melhor deixar esquecido
12
Mas não é assim que penso
Nem a gente do sertão
Eu quero é água na terra
Irrigando a plantação
Eu quero ver a fartura
Nascida da água pura
Que vem lá do Fransicão

Quero ver o bem-te-vi
E ouvir o galo cantar
Ver o roçado crescer
E ver o gado pastar
Sentir o verde da serra
Com água molhando a terra
Que nunca mais faltará

Não quero ver nas cidades
Gente morando em favelas
Crianças abandonadas
Casas sem porta e janelas
Não quero ver minha gente
Infeliz e descontente
Sofrendo dessas mazelas
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Quero ver o sertanejo
Na sua terra morar
Do seu pedaço de chão
Nunca ter que se afastar
Sem precisar ir embora
Sem destino, mundo afora
Pra longe de seu lugar

Quero ver o meu sertão
Produzindo sem parar
Pra alimentar nosso povo
E o restante exportar
Com faz em Petrolina
Que tem uva da mais fina
Só porque tem água lá

Vamos mostrar que é possível
Transformar nosso sertão
Com água do São Francisco
Sem cometer erosão
Sem modificar seu curso
Sem perder qualquer recurso
Que vem de sua vazão
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Para proteger o rio
É só fazer “piscinão”
Ao longo de suas margens
Lá pra dentro do sertão
Quando a chuva do Sudeste
Correr aqui pro Nordeste
Ai eles se encherão

Pra tudo se tem um jeito
Só pra morte é que não tem
Quando o povo quer fazer
Não pede nada a ninguém
Vai na raça, vai no grito
Por isso que acredito
Que essa água logo vem

Acredito no meu povo
Na sua força e ação
Nas águas do São Francisco
Pra fazer a irrigação
De tanta terra perdida
Tão seca e adormecida
Mas que dará produção
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Por isso que quero ver
Essa tal transposição
Das águas do São Francisco
Tão logo pro meu sertão
Pra que o sertanejo ria
Sentindo a doce alegria
De ver a água no chão

Sei que a luta vai ser dura
E muito que esperar
Vai ter muita “cara feia”
Mas é preciso cobrar
Vai ter muita resistência
Ma a nossa paciência
Em breve triunfará

O que não pode é a gente
Olhar o tempo passar
Se conformar com a vida
Sem nada querer mudar
E o São Francisco correndo
Suas águas se perdendo
Quando despejam no mar
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Foto de Maria Goreti

Lembranças

Hoje acordei cedinho,
Abri o baú de lembranças,
Retirei as bonecas,
Os vestidos de chita...
Laços e mais laços de fita.

Corri com os pés descalços,
Cortei o dedo no caco de vidro,
Queimei o braço no ferro de soldar,
Pisei no espinho da roseira, ai...
Como coça o bichinho de pé!

Comi o doce de goiaba,
Lambi os dedos e sorri
Com a cara suja,
De doce e de terra,
Nariz escorrendo... Eca!

Lavei o rosto na água da fonte,
Tomei banho na bacia.
Dei as mãos às amiguinhas
E brincamos de roda
E amarelinha... Jogamos peteca.

Fomos à Missa...
O padre bebeu vinho
E nos deu um gole
Num pedacinho de pão...
Foi a nossa Primeira Comunhão!

Papai e mamãe se beijaram...
Eu os vi, na cozinha, abraçados.
Enquanto ela passava os bifes,
Ele os pegava e, sem que ela o visse,
Dava-nos um pedaço.

Sapatinhos na janela...
Papai Noel chegou, olhou...
Pela manhã a surpresa...
Um anel de ouro, de pedrinha azul...
Uma água marinha!

Meias e calcinha bordadas em rococó,
Um vestido branco de laise de organdi,
Rendas, e laçarotes de cetim,
Um bolo confeitado sobre a mesa,
Uma pose para uma fotografia.

Da janela olho o mar...
Meus olhos transbordam.
Uma lágrima saudosa,
Cai na areia da praia
E some...

Piratas, marinheiros, princesas,
Fadas... Fábulas de Esopo e de Da Vinci...
Bolas, bonecas, peões, peteca,
Sonhos de “Cachinhos Dourados”,
Voltam ao velho baú...

Apago as luzes do sótão...
Abro as janelas do hoje.
Há sol lá fora.
O vento canta...
Sopra as areias do tempo!

©Maria Goreti Rocha
Vila Velha/ES - 12/10/07

Foto de JGMOREIRA

POEMA DO MENINO JESUS - ALBERTO CAEIRO

Poema do Menino Jesus

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos dos muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

Foto de daninho

eu amo a fe

Eu amo a Fernanda mais que tudo . Por que ela tudo na minha vida

E meu olho, e meu nariz e o meu coração, ela e o meu sentimento.

O amor que sinto por ela e maior do o céu por que a frase que falo para ela eu amo muito ela , mais que tudo na minha vida

Ela e minha por que sei ela eu sinto que eu estou perdido , sem assas e se saber o que fazer e sem ela e uma loucura por que minha vida e ela

Fe e minha alegria e meu sentimento so sei que cada dia gosto mais dela

Foto de JGMOREIRA

DISTINÇÕES

DISTINÇÕES

O poeta capitalista
Credicard Visa sobre a mesa
Procura pela rima
(que lhe saldará a dívida
contraída no shopping)
dentro da liberdade concedida.

O poeta socialista
Olho no Pravda sobre a cadeira
Considera suas rimas
Significante/significado obtido
Para não contrariar o partido
Dentro de toda sua liberdade permitida.

O poeta latino-americano
Fuzil ao alcance da mão
Atira rimas no papel
Como quem atira no inimigo-irmão:
Faz poesia não intervencionista
Implorando liberdade e vida.

O poeta brasileiro
Sentado na praça
Tira rima do nariz

Namorando a liberdade
Passeia pela cidade
Sem sobretudo, casaca, Sibéria, fuzil.

Com a matéria-prima da farta liberdade
Mãos dadas com a liberdade mais feliz
Faz poesia de graça.
Sem neurônios eficazes,
Tira rimas do nariz.

Foto de LordRocha®

Filha...

Estrutura singela;
Delicada, pura, fina;
Como a seda é tua pele;
Olhos de um anjo;
Nariz de boneca;
Lábios de sereia;
Face de uma deusa Grega.

Personalidade única;
Marcada por atitudes;
Decisões individuais;
Pro ativas e independentes;
Opiniões formadas;
E defendidas com a;
Certeza da razão.

Ora, meiga e delicada;
Ora, enérgica e impetuosa;
Ora, carinhosa e dócil;
Ora, imperativa;
Menina, moça, mulher;
Ainda que uma criança;
Tem atitudes acima da média.

Assim é você;
Meu amor;
Minha vida;
Minha existência;
Assim é você;
Minha menina;
Minha “FILHA”.

Foto de Thyta2000

Aquele moço

Aquele moço
lá da esquina
Todo sério e elegante

Nem um olhar me consede
Sempre ocupado,
com muita pressa
Vai com seu nariz empinado.

Nunca vi coisa igual
Tão bonito e elegante
Tão sério, aquele moço!!!

Quando passa aqui na rua,
Todo alinhado, que formosura!!
Fico a adimirar da janela
a beleza mais bela,
que os meu olhos viu!
Beleza em traços,
Perfeitamente desenhados.
Que as vezes, me atrevo a pensar,
Seria ainda mais belo
Se um sorriso fizesse brilhar
Destes que explode e contagia
A quem se quer o olhar.

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