Café

Foto de Fatima Cristina

Camisa Branca!

Assim que cheguei à porta de casa percebi que estavas lá dentro. Rodei lentamente a chave na fechadura e nessa fracção de segundos fui assaltado por mil pensamentos. Estarias mesmo ali? Ao fim de tantos meses, depois de um silêncio tão grande? Claro que sim! O aroma do teu perfume é inconfundível e desde que cheguei ao Hall que fui invadido por ele.
Lentamente abri a porta e, como eu desejava, à minha frente estavas tu. Exactamente como sempre te imaginei. Tinhas a minha camisa branca vestida. Adoro ver-te com ela. E tu sabes disso, por isso a escolheste. As mangas levemente dobradas deixam ver a candura da tua pele, os botões, meio abertos, meio fechados, insinuam a curva do teu peito, a brancura do tecido deixa ver os contornos do teu corpo. Atrás de ti, e devido à claridade que entrava pela janela, visualizei a tua lingerie preta, as tuas pernas, e lá estavam as meias-ligas (huumm que sempre achei tão sexys).
Olhei-te nos olhos e percebi que lias os meus pensamentos. Tive vontade de te tirar a camisa branca, de te despir, de fazer amor contigo ali, no hall de entrada, e matar assim, todos os desejos, todas as saudades que tinha tuas. Mas tive medo de te assustar… (talvez por também eu estar assustado).
Aproximei-me, abracei-te com suavidade, com medo que fosses uma miragem e que eu estivesse a delirar. Com medo de te apertar com força e que tu te dissipasses como uma bola de sabão. «- É bom ter-te aqui.» Foi a única coisa que sussurrei enquanto senti o meu rosto tocar no teu. Senti o teu corpo tremer. Nunca percebi se tremias de frio, porque lá fora a neve baptizava os incautos que passeavam na rua, e tu vestias apenas a minha camisa branca, se tremias de emoção por me sentir ali tão perto. Não sei quanto tempo durou aquele abraço, mas senti que podia continuar assim o resto da noite… o resto da vida… e enquanto o abraço durasse, sabia que não ias voltar a partir.
Desprendeste-te do meu abraço e levaste-me para a cozinha. À minha espera estava uma mesa requintadamente preparada. Não esqueceste a elegância da toalha, a magia das velas, o meu vinho e o meu prato favoritos. Durante o jantar falaste de trivialidades e eu olhava-te sorridente e conversadora, com a minha camisa branca, e senti que não te podia voltar a perder, e que o teu lugar era ali.
Fui preparar o café. Continuei a observei-te e percebi que apesar do teu corpo estar ali tão perto, o teu espírito tinha-se ausentado. Vi o teu olhar perdido na janela, observando a Vida a fluir lá fora. Num flashback recuperei a memória dos dias em que te perdias na paisagem da minha janela.
«- É bom voltar a estar aqui.» Disseste, parecendo regressar. Por um momento senti a tua voz embargada e pensei que estivesses a chorar. Olhei-te novamente. Lá estavas tu, debruçada sobre a janela, com a minha camisa branca… e à contra luz voltei a ver os contornos do teu corpo…a tua lingerie preta… a renda das tuas ligas…Como uma trovoada inesperada de Agosto, aproximei-me de ti e tomei-te de assalto. Não pedi licença, não me fiz anunciar, tomei o teu corpo, no meu corpo, porque é meu, porque me pertence, porque ardia em desejo, porque quis fazer amor contigo desde que te vi ao entrar. E tu, entregaste-te como sempre fizeste, sem perguntar como nem porquê, deixaste-te ir como um rio que corre para o mar, como a folha que se deixa guiar pelo vento. E enquanto a neve gemia ao tocar nos vidros lá fora, tu gemias de prazer nos meus braços.
Fizemos amor ali, na mesa da minha cozinha, com a minha camisa branca a testemunhar aquela união dos nossos corpos. Levei-te para o quarto, para aquela cama tão fria desde que foste embora. Fizemos amor o resto da noite, como se quiséssemos recuperar todo o tempo perdido, como se tivéssemos medo que o tempo ainda nos voltasse a separar.
Adormeci exausto. Adormeci feliz. Estavas ali outra vez, em minha casa, no meu quarto, na minha cama, protegida pelos meus lençóis.
De manhã acordei… sozinho… uma brainstorming assolou os meus pensamentos. Teria sonhado contigo? Terias realmente estado ali? Teria feito amor contigo? Sinto tanto a tua falta que já não distingo os sonhos daquilo que é a realidade… mas parecia tão real… Fechei os olhos na esperança de voltar a sonhar contigo, aninhei-me no teu corpo imaginário, deslizei as minhas mãos pelo espaço que naquela cama te pertencia e senti, debaixo da almofada algo que me era familiar… Esbocei um sorriso. Levaste novamente o teu ser, o teu corpo, a tua alma, mas deixaste o teu perfume… na minha camisa branca.

Foto de jorgealbuquerque

Comer sozinho

Adoro comer só
Máxima liberdade do egoísmo
Comer o que quiser... Quanto quiser... Como quiser...
O cardápio é seu, assim como o tempo
Um mini-mundo ao seu controle

E, se você voltar mais de uma vez
Juro que param de olhar...

"Aceita o último pedaço?"
O outro sempre aceita
Mesmo quando você queria
A voz de sua mãe espreita

Colegas de trabalho são os piores
Vinte pessoas num mesa
Sempre uma churascaria
Jung diz que aproxima o grupo
Max diz que mistura a conta

Ao invés, almoço sushi
Self-service no supermecado
Badejinha de isopor, tudo em 20 segundos
Emagrece e não enche o saco

Odeio lavar pratos
Sempre janto na tupperware
Abro a tampa,
ligo o microondas
e pego um garfo.
Sempre na frente da TV
com 2 litros coca-cola (recentemente coca-zero)
E sem copos

A pizza, então, é perfeita
Sempre sobram ao menos 4 pedaços
Que ficam muito melhores frios
Perfeitos para o café
Perfeitos na noite seguinte

Mas o destino é irreverente
Estou em vias de casar
E adoro cozinhar para ela
Assisto ao Oliver (o ingles) e ao Olivier (o frances)

Me divirto muito preparando,
comendo a dois
e até lavando...

Foto de Nana ´De Má

Amo-te.

Amo-te em desalinho,
Amo-te na preguiça,
Amo-te de passagem,
Amo-te em brincadeiras,
Amo-te até quando briga comigo,
Não há dúvidas, te amo.
Amo-te na rua,
Amo-te de manhã,
Amo-te pelo telefone,
Amo-te pelo computado,
Amo-te, não há dúvidas,
Amo-te chocho,
Em chocolate meio amargo,
Em gosto de café,
Em provas pequeninas,
Em atos de boa fé,
Amo-te de manhã,
À tardinha e a noite,
E na madrugada então, só lhe amo.
Em seu sorriso furtivo,
Em seu sotaque gostoso,
Na sua voz macia,
Em seu jeito simples e bom,
Na sua ternura e compreensão,
Amo-te de seu dedinho ao dedão,
E pra mim não há imperfeição,
Em atrasos, em desculpas,
Em maneiras por mim desconhecidas,
Na tua doçura de ser, no seu jeito de me aconchegar,
Amo-te, e sei do fundo de minha alma, que só até então só amei você,
Lhes tudo pra mim, meu sol, minha água, meu sustento,
E agradeço por ti, pois o que sinto é o mais puro amor,
Nunca sentido antes, é você eu sei, cá eu sinto, dentro de minha alma é você.

Foto de Boemio

Promessas e Juras Falsas

Abra porta, sou eu querida Linda
Seu refrator, confessor e
Pecador,
Só quero conversar um
Pouquinho
To me sentindo um pouco
Sozinho
Preciso do seu abraço,
Seu carinho
Sei o perigo que nos rodeia
Nessa
Linha denegrida quente
Margarida,
Sabe que nunca te machucaria,
Sou
Bom cumpridor de minha
Promessa
Ta fria aqui doce linda, deixe
Entrar
Seu poeta deturpador, pare de
Chorar
Não vê que precisa dos meus
Ombros
Que tantas vezes embalaram
Sonhos
Das noites que chegava um
Tanto só
Atrasada pro café que te servia
Com
Muito amor e sob até o mesmo
Sol
Onde eu te disse o quanto era
Bom
Ter seu sorriso puro pra
Esquentar
Os dias que sabia que viria o frio
E a solidão pra perturbar e
Congelar
No quente, saudável se
Relacionar,
Já estou ficando cansado de
Entender
Essa fraqueza e mal estar, há
Tempos
Que não preparas um decente
Jantar,
Pare pra repensar, se entrar a
Força vai
Ser pior pra ti, e não irá
Adiantar clamar
Piedade e complacência, não sou
Seu pai
Vou checar as horas e quando
Voltar
Se não tiver meu chá e você
Espera
Pode crer que vou desfazer a
Promessa
E então vais ver do que é feita
A raça
Humana de juras ridiculamente
Falsas.

Foto de Tati Netto

Quetionamentos

Se Antônia me pediu a manteiga por que lhe passei retóricas?
Se era possível entender àquelas aulas porque as notas não mudaram de tom?
Se os aborígenes lhe causam estranheza por que, para mim, são a imagem da perfeição?
Se afirmam ser gostoso café com leite por que tenho esteoporose?
Se a realidade é tão palpável quanto dizem, com que mãos, com que pele, posso sentir meu filho morto?

Foto de Nana ´De Má

Enquanto você dorme.

Minha inspiração está a dormitar.
Meu bem querer já foi se deitar.
Nego-me em sono pra ti homenagear,
Nesse meio tempo fabrico mais mel.

Quero te adoçar, com tudo que há de bom em mim.
Quero te amar, com toda a destreza de um ser.
Quero te suprir, em todas as vontades e manhas.
Quero ser tudo que sempre quis.

Meu amor já foi dormir,
Mas as estrelas continuam no céu,
O galo ainda não veio me incomodar,
E o meu sono se escorreu pelo seu, boa noite, com frase em fim.

Um dia, te acordarei com o perfume dos pães preparados por mim,
E um laudo café lhe oferecerei,
Com um sorriso e um beijo de bom dia,
assim vou te acordar.

O meu amor já esta a sonhar,
E eu aqui a digitar, em sonhos, em devaneios,
Há, um dia vou te acordar.
E antes que o dia chegue, só pra brincar.

Foto de piumhi10

Somos alguma coisa...

Somos a peça do tabuleiro,
somos o traço do pincel, pelos cantos nunca somos iguais.
Sentimos tanto quando estamos tristes mas em lugar de muitos
mentimos com gestos que acreditamos estar felizes...
Somos a xicara quebrada,a vida em mais um gole de café,
nao sabemos se o amor faz parte, somente tentamos acreditar em devaneios, utopia, esperanças que nos traz nesta frágio porcelana.
Somos e parecemos uma droga, tão rapido nos consumindo,sorrateando em poucos momentos estamos alegres, euforicos;mas derrepente tentamos ser uma nova dose de esquecimento;entorpece o pensamento, porém deslumbra na solidão...
Somos tudo e nada...

Foto de Lou Poulit

Trovão e o Sabiá Sereno

Aos Leitores e Amigos.

Antes de qualquer palavra, quero dizer que será um prazer partilhar com vocês os meus textos e que sou grato ao Poemas de Amor pela confiança que em mim depositaram.

Há alguns anos venho escrevendo contos. Mas vinha fazendo isso como quem armazena sementes, ou seja, sem permitir que elas brotassem antes da hora. Quando esse Site me ofereceu o blog, quis crer que não mais se justificava guardá-los só para mim. Até porque, talvez a partir de agora eu possa ter percepção de como eles tocarão outras subjetividades, diferentes da minha. Alguns serão postados tal como foram criados, enquanto que outros serão adaptados para que se tornem mais congruentes com os objetivos do Site, que não eram prioritários para a formação original da identidade do escritor.

Espero que gostem já desse primeiro conto, pelo menos tanto quanto eu. Mas como não vejo no conjunto deles, ainda, uma maturidade completa, antecipo que conhecer o que despertam nos leitores será motivo de gratidão da minha parte.

Abraços a todos e, desde já, muito obrigado pela gentil acolhida.

LOU POULIT
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Sentada sob alpendre da mansão colonial, sua fortaleza de toda a vida, Sinhá havia se perdido em seus pensamentos. O dia havia se despedido há pouco, na apoteose fugaz de um céu prestante de cores e texturas, que de tudo o que pode tentou fazer para merecer a atenção da moça. Nem a sinfonia da passarada fez efeito. Tudo em vão, restaram as estrelas que nem sequer se aventuravam. A passarada se calou para dar a vez aos grilos, sapos e outros barulhentos notívagos. Sinhá revirava mecanicamente os fartos rendados da saia à sua volta, pois de fato não estava ali.

Então, passos arrastados vindos de dentro precipitaram-na do etéreo, de volta ao corpinho magoado pela posição pouco cômoda. De tão surpresa e assustada, não teve coragem de se virar. E esperou apenas, como seu sangue esperava dentro das veias. Aos poucos uma luz tênue, mas capaz de expulsar soberanamente a escuridão, se aproximou. Depois mais um pouco. A moça temeu que se aproximasse ainda mais e explodiu em gritos nervosos: Saia já daqui! O que quer de mim, demônio? Eu não lhe chamei aqui!

A pouca distância um caboclo mulato de aspecto impressionante, pele muito morena e os olhos claríssimos de uma onça enterrados no rosto embrutecido, como pequenas gemas raras no emboço úmido da terra adubada pelos séculos. O velho Sereno segurava a candeia, tentando compreender, tão próxima, a moça que à distância vira crescer, como flor única naquelas glebas. Durante parcos segundos, Sinhá não conseguiu balbuciar uma palavra. Tentava decifrar como aquela figura estranha havia invadido seu silêncio, que significado poderia ter dentro dele e se seria perigoso para as coisas ricas que guardava em segredo. Porém, achando que o silêncio era ainda mais insuportável, a moça voltou à carga: Quem lhe deu o direito de estar aqui? Ele tentou explicar: Vim só alumiá o negrume da noite pra vosmicê, Sinhazinha... Carecia de se assustá não... Não tenho medo de nada, ela empinou a própria fragilidade. Como poderia temer um empregado dentro da casa do senhor meu pai? Ademais, estava aqui com meus pensamentos...

O homem olhava com segurança os olhos escorridos de lágrimas da moça, cheios de brilhos amarelados pela chama da candeia. Sentia pena dela, mas sabia pelas décadas de convívio que não se devia manifestar piedade para com os senhores. Sereno sabe que está triste, Sinhá. Ma num pode fazê nada não, disse ele abaixando os olhos. Mas como pode saber disso? Não lhe dou esse direito. De onde você saiu?... Ainda com os olhos baixos, ele respondeu: Sempre estive aqui, Sinhazinha. Vim pra essas terras do senhor seu pai na barriga da minha mãe, que se foi embora amarrada naquele pé-de-jurema-branca, bem ali na direção onde a lua vai nascer já. Eu era desse tamaninho, cabia no cesto onde o alazão comia o seu mio. Naquele tempo o capataz era um homenzinho muito do ruim... Ela só queria alimentar a sua cria...

A moça se refez da letargia quando o ouviu falar no alazão, tornando a gritar: Não me fale do meu alazão. Eu amava o Trovão como se fosse uma pessoa! Ninguém montava nele além de mim! E acabaram de trazê-lo num arrasto de pau-de-mangue... Ele estava morto! E eu vou matar quem fez isso com ele... E a chorar convulsivamente ela recostou-se no portal, até sentar-se de novo no degrau do alpendre. Sereno continuou calado, imóvel, com os olhos cravados nas lages do chão. Como se sua alma cansada procurasse uma brecha para um imenso arrependimento.

Tentando descobrir em seu próprio silêncio o que deveria fazer naquela situação triste e constrangedora, o velho caboclo foi lentamente até a arandela pendurar a candeia. Não sabia o que fazer a mais. Durante quase vinte anos quisera ajudá-la em muitas situações de perigo, mas sempre chegava alguém antes. Sereno trabalhara sempre na plantação, às vezes tratando dos cavalos doentes e outras como mateiro. Amava a menina, antecipava os riscos que ela corria, mas haviam outros mais próximos dela. E agora o mesmo sentimento de proteção lhe parecia palpável de tão denso. E ironicamente, embora estivessem ali apenas os dois, simplesmente não sabia o que fazer.

Passados alguns poucos e imensos minutos, a moça quebrou o silêncio, mais calma, porém sem perder a altivez da voz: Como se chama? Sereno, Sinhazinha - disse ele. E porque está aqui, nunca lhe vi dentro de casa?... O velho empurrou a aba do chapéu para trás e coçou a calva rala e branca, como sempre fazia quando se sentia inseguro. Demorou um pouquinho mas respondeu: Eu vim de pés lá de trás da serra dos pastos... O senhor seu pai mandou que me alimentasse e ficasse por aqui até amanhecer. Ela insistiu: Mas por que veio de pés? Ah, Sinhazinha, parei no meio da mata para ouvir o sabiá-da-mata, tava cantando bem em cima de mim. Desde menino adoro os sabiás, num gaio da mangueira, por cima da minha palhoça tem um que fez ninho agora. Quando passo o café da tarde ele tá arrebentando os peitos, de tanto chamá uma fêmea pro seu ninho novinho e arrumadinho. Mas me distraí, meu cavalo assustou-se com a onça e saiu desembestado, nem sei pra onde. Mas vou lá buscar, pro seu pai meu senhor num ficá num prejuízo maió. Não é um bicho caro, é até meio capenga... Mas é um bom companheiro, num sabe? Vendo a perplexidade dela, ele perguntou: Que foi Sinhá, com essa boca aberta, quem nem peixe morto? A moça sussurrou: Onça?... Que onça é essa, Sereno?

O velho respirou profundamente. Não haveria mais de esconder. Ela que soubesse a verdade e que fizesse o que achasse justo. Disse a ela com segurança: a mesma que pegou o Trovão... Aquele sangue todo foi porque quando cheguei ela já tinha garrado no pescoço dele – disse caboclo limpando instintivamente as mãos grosseiras nas calças. A moça mostrou-se inconformada: E você não fez nada para ajudar o coitado? Não tinha uma arma, Sereno? Sinhazinha, ele caiu por cima da bicha, esperneava como um porco endemoninhado... Endemoninhado é você, miserável! Ele era o alazão mais valente que conheci... Só que havia uma onça mordendo o seu pescoço... E um homem medroso e inútil assistindo a sua morte desesperada! Que queria que o Trovão fizesse?... Sereno, se calou constrangido. E ela quis saber mais: E depois, Sereno?... Sinhazinha, num é nada fácil chegar perto de dois bichos grandes e raivosos... E eu só tinha mesmo o meu facão de mato e não queria ferir ainda mais o Trovão. Sim, mas o que você fez? – ela implacável. Eu nada, Sinhazinha, a onça é que resolveu desaparecer. Onça é um bicho covarde. Só pega pelas costas, sangra e espera morrer. Mas se sentindo insegura ela larga e fica de longe só espiando. Esperando a hora de comer sossegada. E o outro, que também é bicho, sabe que vai morrer e que ela vai vir lhe rasgar as tripas. É só uma questão de tempo... O mundo dos bichos é assim mesmo, Sinhá. Ninguém muda não. Vosmicê ta triste e eu também... Mas o Trovão tá não... Só tá esperando os primeiros lampejos do dia, pra correr por essas terras sem fim, pelos campos e pelas matas fechadas, num tem mais nada que lhe impeça... Vai conhecer todos os lugares onde nunca tinha ido, vai beber água do rio grande e vai saltar nas ondas da praia... Enquanto isso nós vai fica aqui chorando de tristeza, porque num pensa que ele ta livre como nunca foi... É que como nós só sente o sentimento da gente, só pensa com a cabeça da gente, então acha que o trovão ta sentindo e pensando a mesma coisa, Sinhazinha... Não tenha raiva não... Que ele não pode aparecer pra vosmicê e lhe contá como que é lá donde ele vem, ele vai ficar triste por causa da sua tristeza...

A moça se esforçava para aceitar aquela sabedoria estranha, que quase desdenhava os seus mais puros sentimentos, todas as coisas que aprendera a sentir. Mas, embora não tivesse coragem de dizê-lo, até que gostava muito de imaginar seu querido Trovão suando da correria que tanto amava, brilhando ao sol e ao luar. Ele amava o vazio dos espaços, os obstáculos que vencia, amava o vento revirando as suas crinas, enchendo-lhe os pulmões no peito enorme e musculoso, e depois expirava com força fazendo seu próprio vento, era quase um deus da natureza... Ah, como ele gostava disso... – dizia a si mesma. Alagada da própria ternura, disse então ao velho: Ele lutou até o último instante não foi, Sereno?

Ele era valente demais, eu o conhecia desde que era um potrinho muito abusado... Sou lhe muito grata, quero que fique, se alimente bem e descanse bastante. E depois vá buscar o pangaré, antes que essa onça o coma, já que não comeu o Trovão, pois que os homens foram buscá-lo antes disso... Sereno sentia-se mais à vontade agora, já sentado também no degrau de baixo. E completou: Vou Sinhazinha, antes de clariá vou atrás dele. E ai dela que se meta... Faça isso por mim, Sereno – ela pediu com raiva.

Não posso prometer, Sinhazinha... Não Sereno, não se arrisque, leve uma arma... E se ela lhe pegar pelo pescoço, como fez com o Trovão?... Vosmicê num fique triste não, Sinhá... Também sou meio bicho, já fiz muita coisa nesse mundo de meu Deus... Já matei oito onças, seu pai meu senhor pode lhe dizer... Uma delas ia morder era o pescoço dele... É que de uns anos pra cá elas estavam sumidas, que os cachorros farejam a catinga delas de longe... Gato tem raiva de cachorro e vice-versa, num sabe?

Eu prometo, Sereno. Vou contar para os meus netinhos essa estória. E vou me lembrar de dizer que você foi um herói, que não pode salvar o Trovão, mas veio de pés buscar homens, para que ele tivesse um enterro digno. Meus netinhos vão aprender a odiar todas as onças, porque essa matou o Trovão... Mas eis que tais palavras indignaram o velho filho-do-mato, e ele quis ser exato: Não, Sinhazinha... Isso não é certo, não é verdade não... Como, Sereno? Se ela não matou o meu alazão, então quem foi?... Fui eu mesmo, Sinhazinha... A moça de um pinote ficou de pé, com o dedo em riste, enfurecida lhe disse: Seu traidor! Vá embora, suma daqui! Nunca mais quero ver sua cara! Não vou lhe perdoar jamais! Vai... Antes que eu grite por alguém para lhe surrar no pé-de-jurema, desgraçado!

Naufragados novamente em profunda tristeza, ambos se foram. Ela para chorar na cama e ele no mato. Mas nenhum dos dois conseguiu dormir. A moça rolou na cama, sobre o lençol úmido das suas lágrimas, até que lhe viessem chamar para o almoço. Não foi. À tarde, na hora da refeição também não quis sair do quarto, deixando a todos apavorados. Seu pai começou a preocupar-se, vendo que as mucamas não paravam de cochichar pelos cantos. Resolveu-se a sacudi-la. Entrou no quarto como um furacão para intimidá-la e foi querendo saber o porque daquele drama. Sabia o porque, também sentia muito pelo alazão, sabia o valor que tinha, mas não queria perder também a filha. Sinhá estava desolada e não apenas pelo seu Trovão. As horas lentas da madrugada lhe convenceram de que havia sido injusta com o Sereno. Estava agora claro que quisera apenas poupar o animal de mais sofrimento. Não podia carregá-lo nas costas e com certeza não quis que o alazão assistisse a desgraçada da onça comer-lhe as carnes ainda vivas. Ela estava soterrada de remorso e com muito jeito fez o velho concordar em mandar buscá-lo. Assim também concordou em levantar-se para se banhar e voltar à vida normalmente.

Alguns dias depois estava novamente sentada no alpendre, mas dessa vez assistiu a obra da natureza que se comprazia em dispor da sua atenção. O dia terminou. Escureceu por completo. Ela se lembrou da noite em que se assustou com Sereno. Dessa vez queria imensamente que ele lhe trouxesse a candeia. Havia preparado algumas palavras para lhe pedir que perdoasse a grosseria. Ninguém lhe dissera uma palavra durante esses dias, tinha a impressão cada vez mais densa de que não lhe queriam falar a respeito. Uma luz veio de dentro, mas pelo andar sem botas não poderia ser Sereno. Era uma mucama, que foi dispensada. Sinhá só queria a luz do velho caboclo, como naquela noite. Agora queria gostar dele, da sua sabedoria e da sua paz. A lua começou a aflorar, derramando seu prateado pelas colinas que pareciam abraçar em segurança a mansão. De repente, algo mexia nas folhas do pé-de-jurema-branca, que pareciam lhe acenar variando o reflexo do luar. Então, para sua imensa surpresa ouviu com nitidez o canto mavioso de um sabiá... Mas como? Sabiá cantando há essa hora? Não pode ser... Não queria aceitar o que seu próprio silêncio lhe dizia, lutava contra com todas as suas forças... Então ouviu de novo, logo ouviu outra vez e de novo tornou a ouvir... As defesas que havia erguido em si própria foram ruindo a cada canto, como se fossem rojões de poderosos canhões. Até que não pode mais sustentar a certeza que preferia. O sabiá só podia estar feliz. Tão feliz que nem se importava com a noite, não queria esperar o amanhecer! Se quisesse vê-lo sempre feliz, devia afastar a tristeza. Libertá-lo do próprio peito para que fosse completamente livre, para que cantasse onde quisesse e quando quisesse. Seu canto não era triste como o de outros, mas vigoroso e doce como o de uma flauta da natureza. A mucama voltou com um semblante pávido, mas quedou-se quando à luz da candeia viu que o de sua Sinhazinha sorria para a lua, já em seu esplendor. A mucama lhe disse: Sinhazinha, o seu pai mandou meu irmão e me primo buscar o Sereno... Mas eles não querem falar, estão com medo. Medo de que? Diga logo... Não fica brava comigo não Sinhazinha... Fala de uma vez, mulher... É que a onça pegou o Sereno também, Sinhazinha...

Completamente perplexa, a mucama ouviu a Sinhá lhe dizer com doçura: Não fique assim tão triste. Há essa hora ele deve estar bem assobiando por aí... Por onde, Sinhazinha?... Pela natureza, pelo céu, pelo rio grande, ou se lavando nas ondas do mar... A pobre mucama não conseguia atinar com aquelas palavras surpreendentes e Sinhá completou: Anda, pode deixar a candeia na arandela e vá pra dentro. Se precisar eu lhe chamo, agora vá. Quando mais tarde seu pai veio lhe buscar para dentro, aliviado pelas falas da mucama, encontrou-a bem disposta, quase feliz para aquelas circunstâncias. Sinhá aproveitara o tempo para fazer uma prece emocionada, repleta de gratidão e amizade, pela alma do velho Sereno. Durante toda vida estivera bem ali e nem o havia notado. Mas havia sido de grande valia justo no momento que mais precisou. Se estava feliz a ponto de assobiar no galho do pé-de-jurema àquelas horas, então deviam estar todos felizes: O Sereno, sua pobre mãe e também o Trovão. Não, não queria mais pensar em tristezas. Foi quando seu orgulhoso pai, sentindo necessidade de participar daquele momento lhe disse: Deixe estar, querida... Aquela maldita onça não irá longe... Eu me encarregarei disso pessoalmente.

Lou Poulit
Direitos Exclusivos do Autor

Foto de Lou Poulit

O Trovão e o Sabiá Sereno

Sentada sob alpendre da mansão colonial, sua fortaleza de toda a vida, Sinhá havia se perdido em seus pensamentos. O dia havia se despedido há pouco, na apoteose fugaz de um céu prestante de cores e texturas, que de tudo o que pode tentou fazer para merecer a atenção da moça. Nem a sinfonia da passarada fez efeito. Tudo em vão, restaram as estrelas que nem sequer se aventuravam. A passarada se calou para dar a vez aos grilos, sapos e outros barulhentos notívagos. Sinhá revirava mecanicamente os fartos rendados da saia à sua volta, pois de fato não estava ali.

Então, passos arrastados vindos de dentro precipitaram-na do etéreo, de volta ao corpinho magoado pela posição pouco cômoda. De tão surpresa e assustada, não teve coragem de se virar. E esperou apenas, como seu sangue esperava dentro das veias. Aos poucos uma luz tênue, mas capaz de expulsar soberanamente a escuridão, se aproximou. Depois mais um pouco. A moça temeu que se aproximasse ainda mais e explodiu em gritos nervosos: Saia já daqui! O que quer de mim, demônio? Eu não lhe chamei aqui!

A pouca distância um caboclo mulato de aspecto impressionante, pele muito morena e os olhos claríssimos de uma onça enterrados no rosto embrutecido, como pequenas gemas raras no emboço úmido da terra adubada pelos séculos. O velho Sereno segurava a candeia, tentando compreender, tão próxima, a moça que à distância vira crescer, como flor única naquelas glebas. Durante parcos segundos, Sinhá não conseguiu balbuciar uma palavra. Tentava decifrar como aquela figura estranha havia invadido seu silêncio, que significado poderia ter dentro dele e se seria perigoso para as coisas ricas que guardava em segredo. Porém, achando que o silêncio era ainda mais insuportável, a moça voltou à carga: Quem lhe deu o direito de estar aqui? Ele tentou explicar: Vim só alumiá o negrume da noite pra vosmicê, Sinhazinha... Carecia de se assustá não... Não tenho medo de nada, ela empinou a própria fragilidade. Como poderia temer um empregado dentro da casa do senhor meu pai? Ademais, estava aqui com meus pensamentos...

O homem olhava com segurança os olhos escorridos de lágrimas da moça, cheios de brilhos amarelados pela chama da candeia. Sentia pena dela, mas sabia pelas décadas de convívio que não se devia manifestar piedade para com os senhores. Sereno sabe que está triste, Sinhá. Ma num pode fazê nada não, disse ele abaixando os olhos. Mas como pode saber disso? Não lhe dou esse direito. De onde você saiu?... Ainda com os olhos baixos, ele respondeu: Sempre estive aqui, Sinhazinha. Vim pra essas terras do senhor seu pai na barriga da minha mãe, que se foi embora amarrada naquele pé-de-jurema-branca, bem ali na direção onde a lua vai nascer já. Eu era desse tamaninho, cabia no cesto onde o alazão comia o seu mio. Naquele tempo o capataz era um homenzinho muito do ruim... Ela só queria alimentar a sua cria...

A moça se refez da letargia quando o ouviu falar no alazão, tornando a gritar: Não me fale do meu alazão. Eu amava o Trovão como se fosse uma pessoa! Ninguém montava nele além de mim! E acabaram de trazê-lo num arrasto de pau-de-mangue... Ele estava morto! E eu vou matar quem fez isso com ele... E a chorar convulsivamente ela recostou-se no portal, até sentar-se de novo no degrau do alpendre. Sereno continuou calado, imóvel, com os olhos cravados nas lages do chão. Como se sua alma cansada procurasse uma brecha para um imenso arrependimento.

Tentando descobrir em seu próprio silêncio o que deveria fazer naquela situação triste e constrangedora, o velho caboclo foi lentamente até a arandela pendurar a candeia. Não sabia o que fazer a mais. Durante quase vinte anos quisera ajudá-la em muitas situações de perigo, mas sempre chegava alguém antes. Sereno trabalhara sempre na plantação, às vezes tratando dos cavalos doentes e outras como mateiro. Amava a menina, antecipava os riscos que ela corria, mas haviam outros mais próximos dela. E agora o mesmo sentimento de proteção lhe parecia palpável de tão denso. E ironicamente, embora estivessem ali apenas os dois, simplesmente não sabia o que fazer.

Passados alguns poucos e imensos minutos, a moça quebrou o silêncio, mais calma, porém sem perder a altivez da voz: Como se chama? Sereno, Sinhazinha - disse ele. E porque está aqui, nunca lhe vi dentro de casa?... O velho empurrou a aba do chapéu para trás e coçou a calva rala e branca, como sempre fazia quando se sentia inseguro. Demorou um pouquinho mas respondeu: Eu vim de pés lá de trás da serra dos pastos... O senhor seu pai mandou que me alimentasse e ficasse por aqui até amanhecer. Ela insistiu: Mas por que veio de pés? Ah, Sinhazinha, parei no meio da mata para ouvir o sabiá-da-mata, tava cantando bem em cima de mim. Desde menino adoro os sabiás, num gaio da mangueira, por cima da minha palhoça tem um que fez ninho agora. Quando passo o café da tarde ele tá arrebentando os peitos, de tanto chamá uma fêmea pro seu ninho novinho e arrumadinho. Mas me distraí, meu cavalo assustou-se com a onça e saiu desembestado, nem sei pra onde. Mas vou lá buscar, pro seu pai meu senhor num ficá num prejuízo maió. Não é um bicho caro, é até meio capenga... Mas é um bom companheiro, num sabe? Vendo a perplexidade dela, ele perguntou: Que foi Sinhá, com essa boca aberta, quem nem peixe morto? A moça sussurrou: Onça?... Que onça é essa, Sereno?

O velho respirou profundamente. Não haveria mais de esconder. Ela que soubesse a verdade e que fizesse o que achasse justo. Disse a ela com segurança: a mesma que pegou o Trovão... Aquele sangue todo foi porque quando cheguei ela já tinha garrado no pescoço dele – disse caboclo limpando instintivamente as mãos grosseiras nas calças. A moça mostrou-se inconformada: E você não fez nada para ajudar o coitado? Não tinha uma arma, Sereno? Sinhazinha, ele caiu por cima da bicha, esperneava como um porco endemoninhado... Endemoninhado é você, miserável! Ele era o alazão mais valente que conheci... Só que havia uma onça mordendo o seu pescoço... E um homem medroso e inútil assistindo a sua morte desesperada! Que queria que o Trovão fizesse?... Sereno, se calou constrangido. E ela quis saber mais: E depois, Sereno?... Sinhazinha, num é nada fácil chegar perto de dois bichos grandes e raivosos... E eu só tinha mesmo o meu facão de mato e não queria ferir ainda mais o Trovão. Sim, mas o que você fez? – ela implacável. Eu nada, Sinhazinha, a onça é que resolveu desaparecer. Onça é um bicho covarde. Só pega pelas costas, sangra e espera morrer. Mas se sentindo insegura ela larga e fica de longe só espiando. Esperando a hora de comer sossegada. E o outro, que também é bicho, sabe que vai morrer e que ela vai vir lhe rasgar as tripas. É só uma questão de tempo... O mundo dos bichos é assim mesmo, Sinhá. Ninguém muda não. Vosmicê ta triste e eu também... Mas o Trovão tá não... Só tá esperando os primeiros lampejos do dia, pra correr por essas terras sem fim, pelos campos e pelas matas fechadas, num tem mais nada que lhe impeça... Vai conhecer todos os lugares onde nunca tinha ido, vai beber água do rio grande e vai saltar nas ondas da praia... Enquanto isso nós vai fica aqui chorando de tristeza, porque num pensa que ele ta livre como nunca foi... É que como nós só sente o sentimento da gente, só pensa com a cabeça da gente, então acha que o trovão ta sentindo e pensando a mesma coisa, Sinhazinha... Não tenha raiva não... Que ele não pode aparecer pra vosmicê e lhe contá como que é lá donde ele vem, ele vai ficar triste por causa da sua tristeza...

A moça se esforçava para aceitar aquela sabedoria estranha, que quase desdenhava os seus mais puros sentimentos, todas as coisas que aprendera a sentir. Mas, embora não tivesse coragem de dizê-lo, até que gostava muito de imaginar seu querido Trovão suando da correria que tanto amava, brilhando ao sol e ao luar. Ele amava o vazio dos espaços, os obstáculos que vencia, amava o vento revirando as suas crinas, enchendo-lhe os pulmões no peito enorme e musculoso, e depois expirava com força fazendo seu próprio vento, era quase um deus da natureza... Ah, como ele gostava disso... – dizia a si mesma. Alagada da própria ternura, disse então ao velho: Ele lutou até o último instante não foi, Sereno?

Ele era valente demais, eu o conhecia desde que era um potrinho muito abusado... Sou lhe muito grata, quero que fique, se alimente bem e descanse bastante. E depois vá buscar o pangaré, antes que essa onça o coma, já que não comeu o Trovão, pois que os homens foram buscá-lo antes disso... Sereno sentia-se mais à vontade agora, já sentado também no degrau de baixo. E completou: Vou Sinhazinha, antes de clariá vou atrás dele. E ai dela que se meta... Faça isso por mim, Sereno – ela pediu com raiva.

Não posso prometer, Sinhazinha... Não Sereno, não se arrisque, leve uma arma... E se ela lhe pegar pelo pescoço, como fez com o Trovão?... Vosmicê num fique triste não, Sinhá... Também sou meio bicho, já fiz muita coisa nesse mundo de meu Deus... Já matei oito onças, seu pai meu senhor pode lhe dizer... Uma delas ia morder era o pescoço dele... É que de uns anos pra cá elas estavam sumidas, que os cachorros farejam a catinga delas de longe... Gato tem raiva de cachorro e vice-versa, num sabe?

Eu prometo, Sereno. Vou contar para os meus netinhos essa estória. E vou me lembrar de dizer que você foi um herói, que não pode salvar o Trovão, mas veio de pés buscar homens, para que ele tivesse um enterro digno. Meus netinhos vão aprender a odiar todas as onças, porque essa matou o Trovão... Mas eis que tais palavras indignaram o velho filho-do-mato, e ele quis ser exato: Não, Sinhazinha... Isso não é certo, não é verdade não... Como, Sereno? Se ela não matou o meu alazão, então quem foi?... Fui eu mesmo, Sinhazinha... A moça de um pinote ficou de pé, com o dedo em riste, enfurecida lhe disse: Seu traidor! Vá embora, suma daqui! Nunca mais quero ver sua cara! Não vou lhe perdoar jamais! Vai... Antes que eu grite por alguém para lhe surrar no pé-de-jurema, desgraçado!

Naufragados novamente em profunda tristeza, ambos se foram. Ela para chorar na cama e ele no mato. Mas nenhum dos dois conseguiu dormir. A moça rolou na cama, sobre o lençol úmido das suas lágrimas, até que lhe viessem chamar para o almoço. Não foi. À tarde, na hora da refeição também não quis sair do quarto, deixando a todos apavorados. Seu pai começou a preocupar-se, vendo que as mucamas não paravam de cochichar pelos cantos. Resolveu-se a sacudi-la. Entrou no quarto como um furacão para intimidá-la e foi querendo saber o porque daquele drama. Sabia o porque, também sentia muito pelo alazão, sabia o valor que tinha, mas não queria perder também a filha. Sinhá estava desolada e não apenas pelo seu Trovão. As horas lentas da madrugada lhe convenceram de que havia sido injusta com o Sereno. Estava agora claro que quisera apenas poupar o animal de mais sofrimento. Não podia carregá-lo nas costas e com certeza não quis que o alazão assistisse a desgraçada da onça comer-lhe as carnes ainda vivas. Ela estava soterrada de remorso e com muito jeito fez o velho concordar em mandar buscá-lo. Assim também concordou em levantar-se para se banhar e voltar à vida normalmente.

Alguns dias depois estava novamente sentada no alpendre, mas dessa vez assistiu a obra da natureza que se comprazia em dispor da sua atenção. O dia terminou. Escureceu por completo. Ela se lembrou da noite em que se assustou com Sereno. Dessa vez queria imensamente que ele lhe trouxesse a candeia. Havia preparado algumas palavras para lhe pedir que perdoasse a grosseria. Ninguém lhe dissera uma palavra durante esses dias, tinha a impressão cada vez mais densa de que não lhe queriam falar a respeito. Uma luz veio de dentro, mas pelo andar sem botas não poderia ser Sereno. Era uma mucama, que foi dispensada. Sinhá só queria a luz do velho caboclo, como naquela noite. Agora queria gostar dele, da sua sabedoria e da sua paz. A lua começou a aflorar, derramando seu prateado pelas colinas que pareciam abraçar em segurança a mansão. De repente, algo mexia nas folhas do pé-de-jurema-branca, que pareciam lhe acenar variando o reflexo do luar. Então, para sua imensa surpresa ouviu com nitidez o canto mavioso de um sabiá... Mas como? Sabiá cantando há essa hora? Não pode ser... Não queria aceitar o que seu próprio silêncio lhe dizia, lutava contra com todas as suas forças... Então ouviu de novo, logo ouviu outra vez e de novo tornou a ouvir... As defesas que havia erguido em si própria foram ruindo a cada canto, como se fossem rojões de poderosos canhões. Até que não pode mais sustentar a certeza que preferia. O sabiá só podia estar feliz. Tão feliz que nem se importava com a noite, não queria esperar o amanhecer! Se quisesse vê-lo sempre feliz, devia afastar a tristeza. Libertá-lo do próprio peito para que fosse completamente livre, para que cantasse onde quisesse e quando quisesse. Seu canto não era triste como o de outros, mas vigoroso e doce como o de uma flauta da natureza. A mucama voltou com um semblante pávido, mas quedou-se quando à luz da candeia viu que o de sua Sinhazinha sorria para a lua, já em seu esplendor. A mucama lhe disse: Sinhazinha, o seu pai mandou meu irmão e me primo buscar o Sereno... Mas eles não querem falar, estão com medo. Medo de que? Diga logo... Não fica brava comigo não Sinhazinha... Fala de uma vez, mulher... É que a onça pegou o Sereno também, Sinhazinha...

Completamente perplexa, a mucama ouviu a Sinhá lhe dizer com doçura: Não fique assim tão triste. Há essa hora ele deve estar bem assobiando por aí... Por onde, Sinhazinha?... Pela natureza, pelo céu, pelo rio grande, ou se lavando nas ondas do mar... A pobre mucama não conseguia atinar com aquelas palavras surpreendentes e Sinhá completou: Anda, pode deixar a candeia na arandela e vá pra dentro. Se precisar eu lhe chamo, agora vá. Quando mais tarde seu pai veio lhe buscar para dentro, aliviado pelas falas da mucama, encontrou-a bem disposta, quase feliz para aquelas circunstâncias. Sinhá aproveitara o tempo para fazer uma prece emocionada, repleta de gratidão e amizade, pela alma do velho Sereno. Durante toda vida estivera bem ali e nem o havia notado. Mas havia sido de grande valia justo no momento que mais precisou. Se estava feliz a ponto de assobiar no galho do pé-de-jurema àquelas horas, então deviam estar todos felizes: O Sereno, sua pobre mãe e também o Trovão. Não, não queria mais pensar em tristezas. Foi quando seu orgulhoso pai, sentindo necessidade de participar daquele momento lhe disse: Deixe estar, querida... Aquela maldita onça não irá longe... Eu me encarregarei disso pessoalmente.

Lou Poulit
Direitos Exclusivos do Autor

Foto de Jorgejb

Por Ela

Olhei-a de soslaio, sem deixar entender meus olhos fitados nela. A sua beleza descrevia o entardecer magnífico de um qualquer campo de trigo amarelo, amadurecido no pincel de um qualquer Van Gogh. Derramava dela a brutal incompreensão do absoluto, um mar de solstício de Setembro, forte e rude, belo e vital.
A presença dela, inundava a luz das coisas em que tocava, inventando áureas mágicas, texturas forradas a prazer, entregando-se nos gestos que compunha – banais – como se fossem momentos únicos, actos solenes, deíficos, imaginando (eu) que seus beijos fossem obras de autor, ternos consolos de quem se sentia um Cesário perdido nos braços da sua amada.
Foi então, sim foi então que a desejei. Desejei-a como se deseja no íntimo de cada alma, ansiando a plenitude, resgatando gestos, olhares, pedindo os cabelos, as pernas, as mãos, os seus seios. E fui então o maior dos poetas, compus oitavas de génio, falando de amor e solidão, incontornável veste de poeta, da muita solidão – e falei de todas as ruas onde a queria levar. Pintei o seu nu com a arte que se arroja e a decência inocente dos anjos. Cantei o madrigal mais terno e leve que se deseja cantar, quando o seu rosto por fim repousar no meu ombro.
Parei. E o meu peito arfava. Havia tecnicamente, como que a impossibilidade de respirar. Num esgar, o meu rosto contraiu-se, os olhos humedecidos pedindo – como qualquer pedinte que se verga a pedir do desespero de nada ter. Decidido, ergui-me. Ergui-me, como qualquer homem se ergue no meio da noite do leito da sua amante, arrefecendo no caminho os pés que o levarão de volta à cama conjugal, sempre quente.
Olhei-a uma última vez, na doçura de um quadro pintado pelo melhor dos artistas, lembrou-me uma bailarina de Degas.
A história chegava assustadoramente a um eminente fim, quase possível, evidentemente clássico. Os meus passos transportavam o sorriso dos conformados, ébria virtude de quem sofre da mais profunda imaginação, e se perdoa diante dos santos, que riem de todas as preces com a mesma terna e impassível candura.
É agora que se inventa um final feliz. Logo ela virá correndo, quem sabe, perguntando as horas, um endereço. Depois, porque não, conversaremos, marcaremos o encontro no café, que será o de todas as vésperas, e o amor, o que move e desenha palavras, nascerá perene e doce, até ao fim deste conto. Ela, será forçosamente a razão do sonho de um homem, a razão, de sempre se perder a razão – por uma paixão.

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